sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Entrevista com H.H. Aga Khan. Celebrando os 100 anos de criação familiar.

 



Sua Alteza o Aga Khan IV recorda os primeiros anos do seu envolvimento nas atividades de corrida e criação fundada pelo seu avô, o Aga Khan III e continuada pelo seu pai, o Príncipe Aly Khan. Explica como anos de esforço e aprendizagem criaram as condições para os atuais sucessos dos Aga Khan Studs.


"A ideia de entrar em uma atividade que não era de forma alguma central para o Imamat Ismaili, e da qual nem eu e meus irmãos tínhamos qualquer entendimento por si só levantou um grande ponto de interrogação. Teria eu tempo e capacidade para aprender algo sobre uma atividade com a qual não estava totalmente familiarizado? Quando o líder de um empreendimento familiar desaparece, a próxima geração não necessariamente continua... Ser o novo jovem proprietário que entraria e faria a operação desmoronar não era necessariamente o que eu queria!"


Entrevista concedida por Sua Alteza Aga Khan a Philip Jodidio:

P.J.: Quais são suas primeiras lembranças das atividades de corrida e criação de seu avô e pai? Parece que o senhor não esteve muito envolvido nessas atividades quando jovem. Quais são alguns dos fatores que levaram à sua decisão de assumir a responsabilidade das operações posteriores à morte de seu pai em 1960?

S.A. Aga Khan: Quando meu irmão e eu éramos crianças, tínhamos muito pouco contato com corridas e a criação de cavalos. Fomos estudantes no internato Le Rosey em Rolle, Suiça desde tenra idade, meu irmão tinha sete anos e eu oito. Estudei nove anos na Suiça e meu irmão dez anos e, claro, não havia por lá corridas de cavalos ou muito pouco. Fomos para Harvard e em Boston também não tem muitas corridas, em Cambridge ainda menos. Sabíamos das corridas e da criação de nossa família, mas de uma maneira distante. Eu estava ciente de meu pai indo as corridas, sabia das reuniões que ele costumava ter com seus amigos desse universo. Vi meu pai trabalhando nas corridas e conhecia as propriedades da família voltadas para a atividade. Quanto a meu avô eu nunca o vi no processo de tomar suas decisões quanto a atividade.

Minha mãe e meu pai se separaram, mas quando estávamos de férias com nosso pai percebemos seu interesse pelas corridas. Este foi o caso em Deauville em particular porque passávamos metade dos nossos verões lá. Quando estávamos em Paris era a mesma coisa, tanto quanto me lembro, não tivemos nenhum contato com as corridas na Inglaterra e muito pouco com as corridas na Irlanda, embora às vezes passássemos uma semana ou dez dias do verão nas propriedades de lá.

Meu avô faleceu em 1957. Meus primeiros anos de responsabilidade no Imamat envolveram um compromisso institucional muito significativo. Foi uma época de descolonização em grande parte da África e das consequências imediatas da descolonização na maior parte da Ásia. A Guerra Fria ainda estava em fúria. O processo de descolonização foi instável, muitas vezes não planejado. A posição das comunidades ismaelitas no mundo em desenvolvimento era uma questão muito presente na minha mente e nas minhas atividades. Tínhamos questões a resolver sobre as instituições de saúde, econômicas, educacionais e outras criadas por meu avô. A quantidade de tempo e esforço necessários para levar avante esse trabalho institucional de forma responsável e coerente foi realmente considerável. Quando meu avô morreu, herdei todas essas responsabilidades e obviamente não tinha pessoal próprio.

No ano em que meu pai morreu, ele estava tendo um sucesso notável com a operação de corrida. Como um jovem que não sabia nada, achei esse sucesso assustador. Havia um grande número de pessoas que dedicaram muito tempo de suas vidas a essa atividade, pessoas que foram muito leais ao meu pai e meu avô. Meu pai só foi dono da operação por três anos. Na verdade, ele herdou a maioria das pessoas-chave que trabalharam por um longo período com meu avô.

Havia um contexto  de fortes relações humanas e lealdade, e eu estava genuinamente desconfortável por não respeitar isso se tivesse decidido não continuar. Por outro lado, imaginei que essas pessoas poderiam olhar para mim daqui a cinco anos e dizer: "Como é que isso aconteceu: acabamos nas mãos de um jovem de vinte e três anos que não sabe absolutamente nada de cavalos de corrida!". Esse foi um pensamento muito desagradável. Tentei decidir se poderia reorganizar a vida para encontrar tempo para aprender sobre turfe. Eu queria ser capaz de fazer julgamentos de valor quanto ao futuro da operação. Se eu fosse me envolver, esperava aprender sobre a atividade e entendê-la, ou não deveria continuar. Após seis meses percebi que provavelmente poderia reorganizar meu trabalho de uma maneira que me permitisse encontrar janelas de tempo para seguir essa atividade, mantendo-me totalmente comprometido com minhas responsabilidades institucionais. 

P.J.: Como o senhor aprendeu o que precisava saber sobre corridas e criação? O que o senhor descobriu enquanto investigava a situação existente?

S.A. Aga Khan: Certamente não sabia o suficiente para entender quais eram as fragilidades, e as fragilidades eram enormes. Este é o tipo de atividade em que sua vitrine pode parecer brilhante, mas o que está na loja pode ser de muito baixa qualidade. Isso é, em certo sentido, o que eu encontrei. Perguntei-me com quem poderia trabalhar? Tive Mme. Vuillier e Robert Muller, que eram duas pessoas especializadas em cruzamentos, Major Hall era o gerente na Irlanda, e havia Alec Head, que era o treinador de meu pai. Essa foi a equipe com a qual eu comecei.

Era um sistema sujeito a forças centrífugas, no sentido de que a operação de criação na França estava pensando uma coisa, enquanto a operação na Irlanda dizia outra. As corridas na França e na Inglaterra também tinham posições divergentes. Embora meu pai fosse inteiramente capaz de lidar com essa situação, ali estava um jovem de 23 anos preso no meio dessas forças centrífugas puxando em direções opostas.

Nos primeiros anos, tudo o que eu podia fazer era ouvir. Passei muito tempo escutando Mme. Vuillier e Robert Muller.  Analisamos o Sistema de Dosagem e a tarefa de manter o método atualizado, e ele tinha que ser atualizado com frequência. O sistema têm aspectos matemáticos e de julgamentos pessoais.  O treinamento foi outro ponto complexo da operação. Alec Head tinha trabalhado com meu pai. Ele treinou vários cavalos excepcionais, mas quando se tornou um proprietário-criador, em vez de apenas treinador, fiquei bastante desconfortável com essa decisão, e nos separamos em muitos bons termos. Foi por isso que comecei a trabalhar com François Mathet. Na época da separação de Alec Head, eu tinha um contato considerável com Mme. Vuillier e Robert Muller, não muito com Alec Head, e menos ainda com Noel Murless, que era o treinador da família na Inglaterra e mesmo com o Major Hall, gerente na Irlanda. O verdadeiro "ambiente das pessoas" era frágil, para dizer o mínimo.

P.J.: A morte do seu avô e depois do seu pai levou à venda de cavalos. Qual foi o impacto dessas sucessivas vendas? Qual era o estado da infraestrutura física da operação quando o senhor assumiu?

S.A. Aga Khan: De início, não percebi o grau de dano causado ao plantel pelas vendas de herança devidas à morte de meu avô e de meu pai em um intervalo de três anos. Tivemos algumas decisões muito difíceis de tomar. Meu pai teve que comprar a parte dos outros herdeiros, além de pagar o imposto pela herança. Ele tinha que decidir que tipo de ação tomar, embora jamais tenhamos discutido isso, acredito que ele tomou a mesma decisão que eu tive que tomar três anos depois com a sua morte, que foi vender as éguas de alto valor e manter as éguas mais jovens e garanhões. Isso por si só foi uma decisão muito difícil de tomar. As éguas de alto perfil estabeleceram seu alto preço, eram éguas que já haviam produzido um bom filho ou tiveram uma carreira de corrida excepcional ou mesmo possuíam um pedigree de primeira categoria. 

Quando herdei a operação tive que comprar a parte dos outros herdeiros e pagar o imposto de morte. Tive que tomar a mesma decisão que meu pai havia tomado três anos antes, vender as éguas de alto valor que restaram daquela venda. Logicamente acabamos com um plantel de jovens éguas não testadas, com carreiras de corrida muitas vezes moderadas. Eu não tinha noção do quão frágil a operação havia se tornado. Outro aspecto que não compreendi completamente foi a importância do investimento necessário em todos os ativos físicos da operação. Não fazia ideia, não tinha noção da real necessidade de investir nos haras e talvez até no centro de formação da potrada. 

Os haras não estavam de acordo com o padrão, eles não tinham cercas suficientes. Quando você não possui um haras com divisões suficientes, você não pode colocar cavalos nos piquetes. Se você não pode colocar  cavalos nos piquetes, você está criando o mesmo número de cavalos em cada vez menos área física e, portanto, os cavalos ficam cada vez mais frágeis por não poderem se exercitar ao ar livre durante a sua formação física. Isso, obviamente, na minha operação, foi uma grande fonte de atrito entre os treinadores e os gerentes dos haras. Os gerentes diziam: "Não podemos fazer melhor" e os treinadores diziam: "Não podemos treinar cavalos frágeis". Toda a operação em 1960 foi, francamente, mais tênue do que eu jamais poderia ter imaginado. Daquele momento em diante, a questão era o quanto não sabíamos, não o quanto sabíamos. Onde iríamos obter as informações necessárias para a reconstrução? A atividade, à primeira vista, teve um resultado glorioso, mas era, de fato, imensamente frágil. Essa foi a realidade de um desafio inesperadamente exigente.

P.J.: Além da influência familiar, pessoas como o treinador François Mathet ou outras tiveram um papel significativo em seu interesse pelas corridas? François Mathet o auxiliou na compra da operação Dupre?

S.A. Aga Khan: François Mathet era o que chamamos um treinador público. Quando ele pegou meus cavalos, seu principal proprietário era François Dupre e depois sua viúva. Ele também trabalhava para Etti Plesch e Jorge de Atucha, além de mais um ou dois outros proprietários com menos cavalos. Quando me juntei a ele, eu ofereci uma quantidade bastante grande de cavalos para ele treinar, mas de forma alguma esse número teve o mesmo impacto em seus resultados como os do estoque Dupre. Nas décadas de 1960 e 1970, os Dupres possuíam a operação dominante de corrida e reprodução na França. Eles produziam um cavalo clássico após o outro. François Dupre e François Mathet trabalhavam em equipe. Acho que eles se falavam todos os dias, a operação deles era muito bem sucedida. Etti Plesch era uma boa criadora, sabia de cavalos, e Jorge de Atucha também tinha bons cavalos. Eu era o novo nome na estrutura Mathet e, efetivamente, tinha um poder muito fraco. Aprendi com o tempo o quão fraco era, assim, nos primeiros anos eu era essencialmente um observador. Estava em modo de aprendizagem. 

Tentei ir a todas as seções de treinamento que pude, e procurei compreender como funcionava. Eu fui a todas as corridas, procurei compreender o programa de corrida, porque se você não entende o programa é muito difícil executar uma operação bem focada. François Mathet e eu trabalhamos cada vez mais juntos. Foi uma verdadeira parceria construída em torno da reconstrução, ele foi um parceiro significativo nesse processo de reconstrução. Ele acompanhava a criação Dupre, a criação Plesch e a criação Aga Khan. Visitava as nossas fazendas todos os anos e revisávamos a potrada juntos, ele sabia o que estaria chegando futuramente para suas mãos. 

Ao mesmo tempo, observei outras operações falhando gradualmente. Quando François Dupre morreu, a estrutura foi continuada por sua viúva. Nesse período vi o declínio gradual da atividade Dupre. Achei que entendia as causas desse declínio e identifiquei as decisões que pareciam erradas, na criação e em outras áreas. Por outro lado, como havia aprendido muito com François Mathet eu sabia avaliar a qualidade do que consistia o plantel Dupre. Quando Mme. Dupre faleceu decidi adquirir a operação. Lembro-me de discutir essa aquisição com François Mathet, que a conhecia intimamente. Ele disse: "Não, você não deve fazer isso. Por qual razão você compraria uma operação que está em notável declínio em um momento no qual a sua está evoluindo? Não precisamos disso." Lembro-me de lhe dizer: "Acredito que precisamos adicionar novas linhagens. Você conhece essas linhagens melhor do que qualquer um. Se elas estiverem sob o meu controle, você continuará treinando o mesmo sangue que conhece tão bem. Se eu puder corrigir os problemas de upstream, poderei fornecer indivíduos que voltarão ao antigo nível Dupre." 

No primeiro ano após a aquisição tivemos a sorte de ter Top Ville.



Top Ville.


Quando comprei a operação Dupre eu não comprei o haras. Isso foi, visto em retrospectiva, um erro, mas na época eu não precisava de terras. Eu tinha área sobrando, por causa de nossas duas sucessões familiares o número de cavalos caiu tão significativamente que eu tinha terras em excesso na Irlanda e França. É por isso que vendi Gilltown, que posteriormente recomprei, e várias outras fazendas para diminuir a propriedade de terras. Quando você analisa essa atividade, vai observar que tudo está vinculado. Você não pode se mover em um setor sem que isso tenha impacto em outra parte, se você pretende ser ativo em todo o ciclo de vida do puro-sangue, criando em suas próprias fazendas, treinando em seus próprios centros e desenvolvendo seu melhor plantel de corrida para o retornar a sua criação. Uma operação circular. É claro que esse não é o único formato viável, pois muitos proprietários e criadores são bem sucedidos sem ter controle sobre todos os componentes do ciclo.

P.J.: O uso de uma administração financeira moderna foi um elemento significativo no desenvolvimento da operação? Isso influenciou na aquisição da criação Marcel Boussac? 

S.A. Aga Khan: Entre 1960 e a compra do plantel Boussac me preocupava a qualidade da gestão de nossa operação, a falta de uma contabilidade analítica era extremamente preocupante. Já havíamos investido muito na aquisição Dupre e decidi que para entender a dimensão econômica da operação teria que desenvolver meu próprio formato contábil. Não havia, na época, nenhum método contábil padrão na indústria de corridas de cavalos. Quando assumi, na maioria dos países nem era necessário apresentar um balanço às autoridades nacionais. Eu introduzi um procedimento contábil e trabalhei nele até que pudéssemos ter uma contabilidade de custos que fosse precisa.

No momento em que a operação de Marcel Boussac ficou disponível, ela estava nas mãos do Syndicat de la Faillite. Eu nunca vi o plantel, nunca fui a Fresnay-Le-Buffard, apenas conhecia um ou outro corredor nos hipódromos. Por causa da contabilidade de custos que eu havia implementado, eu sabia o custo de um determinado cavalo em uma determinada data de sua vida e era capaz de determinar um preço racional a pagar e qual seria o resultado se eu fosse capaz de trazê-lo de volta aos seus níveis anteriores de sucesso. Eu sabia que  M. Boussac vinha condicionando seu programa de reprodução com base na ausência de recursos financeiros. Portanto, ele estava utilizando seus próprios garanhões extensivamente, colocando cada vez mais éguas de volta para seus reprodutores, e ele terminou tristemente em uma espiral de declínio técnico. Mas sua linhagens maternas eram notáveis, e tinham sido notáveis por muitos anos. Notei que quando M. Boussac utilizava um garanhão fora de sua própria linhagem, muitas vezes produzia um bom cavalo. Eu sabia que a crise econômica que ele estava enfrentando era a causa dos danos à sua operação. Se eu fosse capaz de mudar isso, teria uma alta probabilidade de trazer essas linhagens de volta.

Negociamos com o Syndicat de la Faillite e eles aceitaram minha oferta porque queriam uma venda única e fechada. Nessa fase, era muito difícil atribuir um valor comercial ao plantel devido ao seu apelo limitado no mercado. Para ajudar a financiar essas aquisições, tomei decisões que criaram liquidez para o negócio, vendi Blushing Groom e, posteriormente, sindicalizando Shergar.

P.J.: Como o senhor absorveu o plantel Boussac na sua operação? 

S.A. Aga Khan: Com François Mathet analisamos os pedigrees do plantel e notamos que M. Boussac, em seus últimos anos, reconduziu três cavalos como garanhões. Um deles chamado Labus, tinha um antigo pedigree inglês pois era filho de Busted. Descobrimos que Labus estava produzindo bons filhos, mantivemos sua produção e Labus seguiu como garanhão em nossa operação. Decidimos doar os outros dois garanhões - Kouban e Dankaro - para o Haras Nationaux e começamos a servir as éguas Boussac por garanhões comprovados. Muito mais rápido do que qualquer um poderia esperar, essas éguas começaram a produzir bons cavalos novamente. Aplicamos nosso método de cruzamento ao plantel, procurando cruzamentos apropriados. François Mathet e eu passamos por muitas etapas emocionantes que nos levaram a trabalhar como parceiros em estratégia. Eu era responsável por tomar as decisões-chave, mas ele era responsável por fazer com que essas decisões produzissem os resultados que queríamos. Nós nos divertimos muito. Ele era também um homem de grande inteligência com quem se podia conversar sobre qualquer assunto. Às vezes, depois dos treinos, tomávamos café da manhã juntos e conversávamos sobre assuntos como questões de desenvolvimento no Terceiro Mundo, sobre Ásia e África, e ele lia sobre eles na imprensa francesa séria. Tínhamos uma relação pessoal muito boa.

P.J.: O senhor formou uma excelente equipe com François Mathet e o jóquei Yves Saint-Martin . Como isso ocorreu?

S.A. Aga Khan: François Mathet era cartesiano, muito incisivo em seu pensamento, muito lógico e aparentemente sem emoção. Por dentro, ele era de fato muito emotivo, mas nunca quis demonstrar isso. Quanto a Saint-Martin, ele pensava nele como seu próprio filho, a quem criou para se tornar um dos maiores atletas do mundo. As coisas ficaram difíceis com Yves Saint-Martin, que havia sido aprendiz de jóquei com ele e a certa altura houve a separação, e Yves Saint-Martin foi para os Wildensteins.

François Mathet e eu, estudando caso a caso, encontramos outras soluções de equitação. Ele era um treinador tão bem sucedido e meus cavalos estavam alcançando bons resultados, consequentemente éramos um time atraente para um bom jóquei trabalhar. Mas este não foi um momento fácil. É uma atividade que deve ser observada todos os dias, o tempo todo. Eu esperei e lembro-me de acompanhar a trajetória de jóquei de Yves Saint-Martin. Quando achei que havia uma oportunidade, no momento em que ficou claro que os Wildensteins e ele iam se separar, fui a Saint-Martin e disse: "Você se tornaria meu jóquei?".  Ele entendeu o que eu quis dizer. Ele não estaria sob contrato com François Mathet, estaria sob contrato do Aga Khan. Nesse momento, ele viu uma relação completamente diferente que poderia ter com François Mathet e comigo. Ele respondeu: "Eu adoraria, mas só posso aceitar se François Mathet me aceitar de volta". Fui até François Mathet e disse-lhe: "Como seu proprietário principal, gostaria de ter meu próprio jóquei e esse é Yves Saint-Martin". Mathet concordou e Yves Saint-Martin voltou. Reunir aquele time talvez tenha sido um dos momentos mais importantes da vida de François Mathet e acho que foi a mesma coisa para Saint-Martin. Daquele dia em diante, nunca houve uma palavra dura entre eles. Tive uma relação longa, complexa e fascinante com François Mathet. Vivemos outras crises, incluindo a questão Vayrann, onde as autoridades britânicas de corrida sustentavam que o cavalo havia sido drogado com esteroides anabolizantes. Uma parceria deste tipo é reforçada pelas provas que a vida oferece, não apenas por algum possível erro.

 


S.A. Aga Khan, François Mathet e Yves Saint-Laurent.


P.J.: Porque o senhor achou que era melhor comprar operações inteiras em vez de selecionar cavalos em leilões de acordo com suas linhagens?

S.A. Aga Khan: Uma das coisas que sempre ouvi meu pai ou Alec Head dizerem era que esta é uma atividade em que você precisa constantemente reforçar seu inventário de éguas. Se você ficar preso em um determinado momento em seu plantel de reprodução, seja do lado masculino ou no lado feminino, perderá sua capacidade de realizar. Fui a leilões, revisei catálogos, comprei cavalos - não muitos - e aprendi os bons e os maus aspectos desse tipo de atividade. Percebi que o risco de comprar indivíduos em leilão é muito alto, principalmente com potros. Comprei desta forma essencialmente para adicionar novas linhagens, mas também me tornei prudente em comprar potrancas em leilão. Você compra uma potranca de três anos e ela fica fora de treinamento. O que ela vai produzir? Ela vai ter uma produção válida? Você compra um potro e ele também pode não se apresentar...

Se aprendi indo a leilões, também aprendi observando os animais em corrida das operações em andamento. Quando vejo cavalos nos hipódromos ano após ano, acho que saberei mais sobre uma criação do que posso ler em um catálogo. Por meio da observação, acredito que posso obter uma melhor compreensão de uma operação, principalmente se ele estiver sob a mesma propriedade por um longo período. Posso vê-la subir ou descer tecnicamente e posso ver quais linhagens funcionam e quais não. Em termos de manter vivo o processo necessário de mudança, determinei que era melhor comprar operações válidas inteiras, mesmo que estivessem desacelerando, desde que eu conhecesse as razões de sua desaceleração, em vez de escolher indivíduos em um leilão.

Para as três aquisições de Dupre, Boussac e Lagardère, fomos capazes de medir a compatibilidade ou incompatibilidade de suas linhagens com as nossas. Eu estava criando um processo de mudança e esse processo provou sua validade. Avaliando esses fatores, conseguimos estabelecer o nível de interesse que deveríamos ter naquele plantel do ponto de vista da criação. Se era um estoque que simplesmente adicionava os mesmos pedigrees ou causava muita consanguinidade em uma família em particular, não havia sentido em olhar para ele. O extraordinário foi que todas as três aquisições - Dupre, Boussac e Lagardère - tinham linhagens totalmente compatíveis com as nossas e, portanto, não estávamos acrescentando cada vez mais indivíduos às mesmas famílias, e sim linhagens compatíveis, mas não idênticas. Trazendo assim, linhas familiares convergentes para a nossa operação.

P.J.: Sua criação é famosa pela qualidade de suas reprodutoras. Como o senhor conseguiu o número de éguas necessário?

S.A. Aga Khan: Com o tempo tentamos descobrir o número ideal de éguas para que elas alcançassem com sua produção algum tipo de estabilidade em nosso desempenho nas corridas. Analisamos a probabilidade com um determinado número de éguas e chegamos ao que pensávamos ser um número ideal de 165 matrizes. Quando comprei as operações Dupre, Boussac e Lagardère, fomos muito acima desse número, então tivemos que começar a considerar reduções. Com 165 éguas você precisa de uma certa quantidade de terra, um determinado número de treinadores e garanhões, e você enfrenta um certo custo de manutenção. Nessa escala, torna-se uma atividade muito complexa e você não pode deixá-la fora do controle, a menos que você tenha outros motivos para estar na atividade. Se você deseja executá-la como uma operação essencialmente autossustentável, deve ser cauteloso. Isso era a teoria, mas que não foi totalmente implementada. Demos tanta ênfase à qualidade que, comprando Dupre, Boussac e Lagardère, não conseguimos manter os números do nosso plantel dentro do que considerávamos o número ideal. Fazer isso nos levaria a vender éguas que não deveríamos vender. Em algum momento, tivemos que aceitar que nos tornaríamos uma operação maior, no entanto, eu não gostaria que fosse muito maior do que temos agora.

P.J.: O que o senhor pensava quando comprou a operação de Jean-Luc Lagardère?

S.A. Aga Khan: Quando comprei a criação Lagardère, ela era bastante singular. Jean-Luc tinha comprado as fazendas Dupre. Quando adquiri a sua operação, não hesitei em comprar suas fazendas, que havia deixado de comprar de Mme. Dupre trinta anos antes. Quando primeiro os Dupre e depois Jean-Luc Lagardère foram ativos nas corridas e criação de puro-sangue, eles utilizaram o Haras d'Ouilly como sua fazenda de criação de yearlings. Durante esse período, Ouilly acabou sendo, na minha opinião, a melhor área da França para criar puro-sangues. Tive a sorte infinita de ter uma segunda chance para adquirir esse pedaço de terra na região, que julgo, a mais fértil do país. Na Irlanda, penso que Sheshoon esteja nas terras mais férteis do país. Posso estar errado, não sou agrônomo, mas se você olhar para a história da criação dos grandes cavalos, você pode dizer qual região produz os grandes corredores e qual região não. 

No caso da operação Lagardère, comprei uma estrutura que era o epítome da antítese da minha. Jean-Luc tinha um garanhão chamado Linamix com o qual estava totalmente comprometido e para quem comprou éguas. Ele construiu sua operação de criação em torno daquele garanhão, algo que nunca tentaríamos fazer. Na verdade, somos diametralmente opostos. Decidimos que nunca enviaríamos mais de doze a quinze éguas para o mesmo garanhão. E ele estava enviando as mesmas éguas para Linamix dois, três ou quatro anos seguidos. Ele estava perpetuando o sangue de Linamix durante toda a sua operação de criação e assumindo um nível de risco que nunca teríamos praticado. Mas ele fez isso, e fez funcionar muitíssimo bem. Descobrimos não apenas que Linamix produzia excelentes corredores, mas também que ele era um excelente pai de reprodutoras. A confiança de Jean-Luc Lagardère naquele cavalo foi comprovada com o tempo. Ele e eu conversávamos sobre criação e eu entendia que suas técnicas eram totalmente diferentes das nossas. Ele usou a ideia do chef-de-race muito menos que nós, trabalhou de uma forma altamente individualista e muito criativa. Não existe um modelo absoluto no élevage do puro-sangue, você não pode necessariamente dizer que um método seja mais eficaz do que outro e ele fez seu trabalho de uma forma magistral.

P.J.: O senhor alcançou notável grau de sucesso nas corridas e criação. Quais as metas para aperfeiçoar ainda mais a sua criação?

S.A. Aga Khan: Um dos objetivos é estabilizar  os homens e mulheres que trabalham nas fazendas. Na Europa está em curso um processo de urbanização e industrialização, a remuneração agrícola tende a ser menor do que a do trabalho industrial e a questão é como encontrar as melhores pessoas e mantê-las. Elas precisam do respeito e cuidado que todos os outros grandes colaboradores têm.  Quando alguém está a quarenta anos com cavalos e se aposenta ou quando você tem um bom colaborador e ele por motivo  de hospedagem ou salário decide trabalhar na indústria, você perde uma pessoa importante. A operação da fazenda depende do número de pessoas que você tem e da qualidade do ambiente de trabalho. Temos que olhar para os processos de mudança... idade do pessoal do campo, idade dos treinadores, idade dos jóqueis, idade do plantel...olhando para o futuro. Se esta é uma empresa que você deseja manter viva, você deve ser capaz de reconhecer jovens talentosos que estão surgindo e pagar bem por isso. 

É necessário ter a capacidade de identificar cavalos importantes. A identificação precoce do bom garanhão e da boa égua é fundamental para essa atividade. Se perdermos um desses eixos  podemos estar comprometendo toda a nossa operação. Esses animais são tão raros e marcam a criação por tanto tempo que você não os pode perder. Se o nome de um cavalo aparece com frequência nos pedigrees, isso significa algo...

P.J.: Como o atual sucesso de sua criação nas pistas se reflete nas decisões que o senhor tomou nas últimas décadas?  

S.A. Aga Khan: Ao longo de minha trajetória nessa atividade, me perguntei qual a estrutura ideal que eu e minha família precisávamos para garantir um sucesso contínuo. Como se isso fosse possível... Quantos treinadores, quanta terra, quantas éguas, em quantos países devo operar? Acho que o momento mostra que a estrutura está funcionando a contento tanto quanto eu seja capaz de fazê-la girar. Quando você pensa em como eu comecei e observar o atual momento verá que há uma diferença considerável. Temos um conjunto diferente de países em que operamos; temos uma relação diferente entre as fazendas e as operações de corrida. Integramos um centro de treinamento privado na França, mas também usamos treinadores públicos na França e Irlanda. Se existe algum momento em que uma operação tradicional na criação do puro-sangue esteja estável, acredito que estamos mais perto disso do que nunca. Mas, não significa que não há muito ainda a ser feito. Existe muito trabalho a fazer e, mesmo quando feito, não há garantia de que esse emocionante jogo de xadrez com a natureza possa ser definitivamente vencido.