quarta-feira, 26 de abril de 2023

Carta ao Leitor

 



Prezados leitores,


Diante do constante recebimento de e-mails que reclamam do comportamento errático de nossas publicações. Somos obrigados a concordar que nosso ritmo não favorece criar um hábito de visita ao blog. 

Mas, devemos ressaltar, que nosso blog tenta oferecer aos nossos leitores uma visão técnica sobre o universo do PSI e diante desse perfil buscamos oferecer, à reflexão e debate, pensamentos de diversas correntes quanto ao entendimento do PSI em seus aspectos de élevage

Como a maioria dos nossos textos são autorais, consequentemente dependem mais de inspiração do que transpiração, então eles são publicados conforme o sopro criador surge.

Nesse período de maior disponibilidade, está sendo prazeroso e estimulante preparar para diversos clientes suas Cartas de Monta, e vermos que o estoque genético brasileiro ainda oferece plenas condições de se aportar pontos de força aos garanhões disponíveis, mesmo que alguns apresentem poucas credenciais. 

Qual criação mundial pode hoje oferecer inbreedings 3x3 ou mesmo 4x4 sobre chefes de raça como Sadler's Wells, Mr Prospector, Royal Academy, Nureyev, Nijinsky, Blushing Groom, Roberto, Shirley Heights? Ou mesmo projetarmos inbreedings como os acima citados sobre importantes garanhões para o Brasil como Know Heights, Roi Normand, Ghadeer, Forestry, Wild Again... ou outros em matriarcas como Intriguing, Gonfalon, River Lady, etc?

Como o momento é inspirador, escrevemos e mesmo resgatamos em nossa biblioteca muitos artigos, tornando-se assim, possível criar um bom estoque para futuras publicações. 

Consequentemente, informamos, que a partir de maio, teremos a rotina de publicar um novo artigo todo dia 1 e 15 de cada mês, eventualmente poderá acontecer a publicação de mais algum.

Agradecemos a todos os amigos que nos acompanham nesses 7 anos de vida do blog Turfe e Élevage. 

E como sempre, agradeço e reverencio os meus grandes mestres do passado, Sr. Atualpa Soares, Dr. Reynato Sodré Borges, Dr. Roberto Seabra, Dr. Francisco Eduardo de Paula Machado e Dr. Franco Varola, pois sem suas inspirações esse blog jamais seria escrito.


Ricardo Imbassahy









sexta-feira, 21 de abril de 2023

Reynato Sodré Borges - 2ª carta



Frizli, outro craque do Haras Tibagi, fruto de cruzamento planejado por Dr. Reynato.

  

Meu Caro amigo,

 

Respondo a sua carta onde me conta como são as terras que comprou, uma propriedade com 21 hectares na Serra dos Órgãos. Altitude de 900 metros com possibilidade de compor 18 hectares de piquetes, sendo que houve algum movimento de terra que você diz ter sido de pequena monta. Mas, gostaria de lembrar que qualquer movimento de terra destrói a matéria orgânica e torna-se indispensável refaze-la. Evite ao máximo adubação química, pois ficará sempre escravo dela e preferencialmente faça adubação verde. Plante nessa área que foi movimentada leguminosas, é claro, após preparar a área com aração, gradeamento e correção do ph. Pode ser lab-lab (Dolichos lablab) ou mucuna preta (Mucuna aterrima). Qualquer dessas leguminosas dá grande volume de massa verde e sua inclusão no solo deverá ser feita quando florescer – antes de granar.

Dos 18 has para pastagens, aconselho que faças 17 piquetes, um número ótimo que lhe proporcionará sempre ter áreas para descanso e produzir feno e/ou corte verde, com 17 piquetes você deve aproveitar no máximo 12. Você poderá pensar que a área é pequena para tantos piquetes, mas, lembre-se o importante é a carga animal. E como necessariamente o seu haras terá um plantel adequado a área de pastoreio haverá espaço mais do que suficiente nos piquetes para as unidades de carga.

Sugiro que você faça 3 piquetes de 2 has e 10 de 1 ha, o que soma 16 hectares. Os 2 hectares restantes serão destinado a 4 piquetes de ½ ha. Sugiro que 2 desses 4 piquetes de ½ ha (que serão os mais próximos ao casco do estabelecimento) possam ter mais subdivisões para situações específicas.  Esse setor do haras comportará os piquetes destinados ao garanhão residente, maternidade, animais em condições extraordinárias, etc. Quanto a maternidade, é fundamental se ter uma pequena edificação com 2 boxes de 25 m² (5x5 m) tendo entre eles o alojamento para um empregado e um laboratório. Um dos boxes será o do garanhão e o outro oposto será a maternidade.

Estou certo que vários amigos seus lhe dirão: “Por que gastar com uma maternidade quando as éguas poderão parir num boxe de cocheira?” Não se deixe levar por palpites, aparentemente bons. Veja bem: num boxe de cocheira não se pode ter cuidados de antissepsia e o risco para o potro e para a égua é muito grande. Deve ser boxe próprio , de paredes lisas e pintadas a óleo (o que facilita a desinfecção) e construídas de modo a fazer ângulo obtuso com o solo, não permitindo que a égua se tranque. A colocação de acolchoados fixados de forma temporária nas paredes (para evitar lesões de colunas nos potros) amortecendo o choque é também importante pois, com isso se faz a profilaxia de futuras “bambeiras” nos cavalos de corrida. Deixo a sua imaginação fértil a solução para a desinfecção desses acolchoados, consulte sobre isso melhores autores... Não esqueça que a porta interna para o laboratório deve ter uma abertura que permita uma ampla visão no momento da parição. Não permita, meu caro amigo, visitantes na hora do parto. A égua deve ficar só, vigiada pelo visor, para uma interferência quando necessária e nada de conversas , risadas e outras atitudes perturbadoras. A parição é um ato que merece respeito.

Entre as cercas dos piquetes você deverá plantar “cerca viva”, que não permite que os animais de um piquete se comuniquem com os outros, evitando sérios acidentes. Recomendo para tal a utilização de Tumbérgia arbustiva (Thunbergia erecta), meu resultado com ela no Haras Fortuna, em Teresópolis, foram excepcionais. Com um ano e meio de plantadas e bem adubadas, já formavam ótimas sebes.

Considerando um módulo de 20 éguas devemos ter 50 boxes à disposição, fora a maternidade e boxe do garanhão. Para cada égua reprodutora, deve-se ter dois ou até três boxes: o da mãe, o do produto do ano seguinte ao desmame e o do produto do ano anterior se ainda não foi treinar. Quanto ao tamanho de sua propriedade, que oferece 18 hectares de pastagens o número ideal, a meu ver, é o de 15 matrizes, podendo chegar em um limite máximo de 20.

Você deve construir 2 grupos de cocheiras no seu haras com boxes de 4x4 metros, com acessos por suas laterais e corredor central de 3 metros para passagem do trator e caçamba no sentido de abastecer e limpar. As paredes dos boxes para o corredor serão mais baixas declinando em uma meia porta. Isto é importante, pois desse modo os animais se veem e ficam mais tranquilos, além do groom poder fazer uma fiscalização mais eficiente, pois não necessita abrir boxes para observá-los.

O pavilhão destinado às éguas deverá ter 20 boxes, 10 de cada lado, não esquecendo amplo e ventilado depósito para forragem, quarto para arreios e ferramentas, banheiro, pequeno laboratório e guardados. O pavilhão da potrada deve ter 30 boxes, 15 de cada lado, com depósito de forragem, quarto para arreios e ferramentas, mais banheiro. Você com esses 30 boxes sempre terá condição de receber eventuais animais de seu stud que necessitem algum período de descanso ou manter no haras alguma fêmea reservada para a reprodução por questões diversas.

Observe bem os pontos de água nos boxes. Ficam nas paredes e protegidas para evitar acidentes na passagem dos animais. Os cochos de água devem ser lavados constantemente e terem esgoto, deste modo o funcionário é obrigado a lavá-los diariamente. Caso coloque dispositivo automático no bebedouro verás que não conseguirás boa limpeza, pois ele sempre cheio mostrará água limpa e a sujeira e o limo ficarão depositados em seu fundo e paredes. Outro inconveniente é que esses bebedouros enguiçam facilmente, daí, alagar a cama criando problema para os animais e na limpeza dos boxes.

O melhor piso para os boxes é o de tijolos maciços mas estou certo que o criador brasileiro não aceita essa indicação. O piso deve ter uma pequena inclinação para a porta – ao longo das quais correrá uma galeria de esgoto para o sistema de captação do haras. O corredor deve também ser pavimentado com tijolo maciço. O tijolo maciço é um magnífico piso para animais desferrados como são os em élevage, a durabilidade média desse tipo de piso é de 8 anos e lembremos que nas duchas é indispensável o piso de tijolos para evitar acidentes lamentáveis. Contou-me um amigo que assistiu a morte de uma égua ao escorregar no corredor de cimento da cocheira, quando era apressadamente puxada a trote; bateu com a cabeça e fraturou o crânio. Acidentes como esse não podem ocorrer e para tanto é necessário que se monte uma estrutura correta para evitá-los.

Os piquetes devem ser cercados com  moirões e ripas de madeira de boa qualidade e sua fixação mais correta é a de parafusos, nunca fixe com pregos. Não permita desníveis abruptos nos piquetes. E muito cuidado com buracos de formigas e corujas que poderão causar lesões graves nos animais.

Caso esteja muito apressado na composição dos piquetes  há regras básicas para a implantação de uma boa pastagem. Se o solo for ácido, o que é certo nessas várzeas, convém aplicar 3.000 quilos de calcário dolomítico moído, que deverá ser coberto por uma lavração de 10 a 15 cm de profundidade, 30 dias antes de semear o adubo verde. Incorporada a massa vegetal do adubo verde ao solo, pode-se fazer a adubação química. Quando possível, convém aplicar, por hectare, 3.000 quilos de esterco curtido, preferencialmente o de galinha, acrescido do adubo químico por meio de uma gradagem leve. Uma fórmula de adubação química que você poderá utilizar é:


1 – Nitrocálcio....................150 quilos

2 -  Superfosfato simples... 200 quilos

3 -  Farinha de ossos ........ 250 quilos

4 – Cloreto de potássio ......130 quilos


No Haras Fortuna, um haras bibelô de 8 éguas em Teresópolis, que por razões alheias ao turfe teve curta existência, utilizei o esquema acima citado, e que me foi passada pelo engº. agrº. Raymundo Pimentel Gomes, obtendo sobre solos degradados ótimas pastagens.

O conselho de aproveitar a grama existente, bem aclimatada é bom, mas é necessário enriquecer os piquetes com gramíneas de alta qualidade. Se bem que, em boa parte da região serrana do Rio de Janeiro e mesmo nas terras altas da Mantiqueira o capim quicuio (Pennisetum clandestinum) já se naturalizou e passou a ser uma espécie endêmica. Se esse for o caso da sua propriedade é bom o manter, pois é das melhores gramíneas para o cavalo, se dá bem em altitude e resiste ao inverno e mesmo geadas, tem bom teor proteico e dá também uma boa altura permitindo fazer corte verde ou o usá-lo para cama. O seu inconveniente é ser altamente invasor e dominante, consequentemente de difícil consorciação com leguminosas. Estudos agrostológicos indicaram que dentre as leguminosas que melhor suportam a convivência com o capim quicuio estão o amendoim-forrageiro (Arachis pintoi) e o cornichão (Lotus corniculatus)  – ambas leguminosas aptas a cavalos pois não causam timpanismo. Com piquetes de capim quicuio consorciado com alguma dessas duas leguminosas você terá boas condições de criar cavalos de corrida.

O capim quicuio por possuir mais folhas que talos produz um feno de ótima qualidade, como constatei no Stud Rocha Faria que o recebia de seu haras.

Apesar do capim quicuio ser extremamente adaptado à sua região não é prudente ficar dependente de uma mesma gramínea e/ou leguminosa em uma fazenda.

Consequentemente, uma segunda opção de gramínea perene torna-se fundamental. Sugiro o rye-grass inglês (Lolium perenne) como a outra opção de gramínea para o seu haras. O rye-grass inglês é conhecido erroneamente no Brasil como azevém perene, portanto ao adquirir sementes não confundir com o azevém (Lolium multiflorum) que é uma gramínea anual. O rye-grass inglês foi introduzido no Haras Fortuna e se tornou um tremendo sucesso. É uma planta de fácil estabelecimento, a semente germina com rapidez e produz plantinhas vigorosas que logo cobrem o terreno e formam uma densa pastagem definitiva. Essa facilidade de estabelecimento a faz dominante por sua competência com outras plantas quando semeadas em mescla. É mais exigente na fertilidade do solo que o quicuio e em especial nitrogenada. A vantagem do rye-grass inglês é sua preferência por solos ligeiramente ácidos. Semeamos com uma dose de 24 kg por hectare associada ao amendoim-forrageiro (10 kg por hectare) e obtivemos uma pastagem invejável, semelhante ou até mesmo superior aos outros piquetes formados por capim quicuio e cornichão. Um cuidado que você deve ter em um haras de criação intensiva como o seu é quanto ao corte das forrageiras do piquete. Elas devem ser aparadas muito bem , para que os animais não precisem buscar o alimento noutro lugar, se o de onde ele estiver for muito alto. Dessa forma ele é mantido em seu lugar sem maiores problemas. O pasto deverá ser cortado de 5 a 6 vezes por ano. Nesse mesmo período deverá ser feita 3 adubações. O fato de se fazer 3 em um ano é baseado em um raciocínio, cientificamente lógico: se forem aplicadas a quantidade de adubo suficiente para 3 aplicações de uma só vez a pastagem crescerá abundantemente nos primeiros meses e será frágil no período de seca, mesmo que você use irrigação por aspersão, como deverá fazer aproveitando o riacho que você disse ser lindeiro à sua propriedade.

No Haras Guanabara a reforma total dos pastos se dava em rodízio a cada 3 ou 4 anos.

A presença de leguminosas é muito importante. Diz-se de um modo convincente que um animal dando uma bocada nas gramíneas leva 6% de proteína e dando nas leguminosas leva 14%. As leguminosas hospedam bactérias (os rizóbios) nos nódulos superficiais de suas raízes que capturam o nitrogênio e rompem as suas ligações moleculares, efetuando assim, o processo de conversão para formas utilizáveis pela planta. Daí o elevado valor proteico. E também enriquecem o solo na sua vizinhança com a queda de suas folhas, sendo fácil perceber que as gramas perto das leguminosas são mais verdes.

Para o plantio das leguminosas são necessários cuidados especiais, assim, faz-se indispensável semear as leguminosas pratenses após a aplicação dos específicos inoculantes. Em regra é aconselhável escarificar as sementes e usar um adesivo para fixar os inoculantes. No Haras Fortuna banhamos as sementes com leite e desse modo o inoculante se fixa, esse procedimento me foi ensinado por Joseph Gatti, o competente manager do Haras São Bernardo.

No Haras Santa Annita havia capineiras de capim pangola (Digitaria eriantha), que era utilizado em corte na alimentação do haras, das vacas leiteiras e ainda permite um bom aproveitamento para cama.

Em momento algum, prescindimos no Haras Fortuna da supervisão de agrônomo especializado em pastagens e tudo o relatado acima quanto a forrageiras foi executado sob sua orientação.

Quando você for a França em maio-junho procure perceber nas planuras da Normandia a riqueza de trevos e isto é um dos característicos de zona própria para se criar cavalos de corrida, o mesmo você observará no sul do Brasil, Uruguai e Argentina. Infelizmente no Haras Fortuna, em Teresópolis, nunca conseguimos sucesso na implantação de qualquer tipo de Trifolium.

Com essas cartas, meu bom amigo, o meu desejo é fazê-lo cursar o “Mobral” dando conhecimentos preliminares para permitir a sua criatividade dentro de moldes corretos e também elevar o seu julgamento para consultar bons autores. Sobre os piquetes, apesar de minhas sugestões, você deve consultar um agrônomo com experiência em pastagens na região. Mas não qualquer um e sim “aquele agrônomo” em letras de ouro e que tenha experiência na criação de cavalos.

Na próxima carta conversaremos sobre o pessoal, mas gostaria de reafirmar que em um haras bibelô como o seu e que não dispõe de uma maior oferta de área para pastoreio o meu plantel nunca passaria de 15 éguas em reprodução, pois teria um lote de 8 vacas**, preferencialmente da raça Jersey para produzir leite. Ofertar leite desnatado a potrada é uma prática adotada em criações de sucesso como os Haras Guanabara, São Bernardo, Tibagi, Faxina e Santa Annita.


** O bovino por ser ruminante, teoricamente consome a metade em pasto de um equino. Então 8/10 vacas e principalmente de uma raça pequena com baixo consumo de forrageiras como a Jersey certamente manterá um mesmo equilíbrio em pastoreio de 4 ou 5 éguas. Daí a minha sugestão por 15 éguas em reprodução e não 20 para uma propriedade com o tamanho da sua.

 

Reynato Sodré Borges

Tebas – abril - 1979

 

 


 


quarta-feira, 12 de abril de 2023

Reynato Sodré Borges - 1ª carta

 

  

Na foto o craque Arnaldo, fruto de um cruzamento que Dr. Reynato considerava sua obra-prima.


No longínquo ano de 1973, o senhor Atualpa Soares me apresentou  ao Dr. Reynato Sodré Borges, e daí frutificou uma relação que pode-se considerar quase que paterna, inclusive Dr. Reynato carinhosamente me chamava de seu "filho turfístico". Daí foram uma sequência de acontecimentos, comecei a frequentar as memoráveis reuniões dos sábados de manhã na cocheira do Haras Santa Annita - Dr. Carlos Gilberto da Rocha Faria - e assistir as corridas na mesa Rocha Faria nas tribunas sociais do JCB, sempre frequentada por nomes como os de Roberto e Nelson Seabra, José Albano da Nova Monteiro, Mariano Raggio, Afonso Burlamaqui, Bertrand Kauffmann, Amilcar Turner de Freitas, Sergio Cartier, Leonídio Ribeiro, Gustavo Philadelpho, Franco Varola, John Aiscan, etc. Um manancial inesgotável de conhecimento turfístico.

Insistia constantemente com Dr. Reynato para que escrevesse suas considerações sobre turfe e ele sempre refratário a ideia. Naquela época Dr. Reynato já havia deixado a diretoria técnica do Haras Tibagi, o qual ajudou a fundar, e prestava seus conhecimentos a Mariano Raggio em seu Haras Sideral - atual Haras Doce Vale. 

Com o encerramento das atividades do Haras Sideral, ele foi residir em Tebas, na Zona da Mata Mineira, e continuou frequentando o Hipódromo da Gávea toda vez que ia ao Rio visitar a filha ou sua irmã.

Certo dia recebi uma carta do Dr. Reynato, na qual explicava que para ele era mais fácil escrever em tom coloquial e estaria me enviando uma série de cartas nas quais trataria da montagem de um haras ficcional e assim discorreria sobre o tema. 

Essas cartas, em número de 11, começaram a chegar em março de 1979 e findaram em setembro do mesmo ano, pois Dr. Reynato veio a falecer no início de outubro. 

Como um tributo a sua memória essas cartas serão publicadas aqui no blog, mal ou bem, algo de seus pensamentos ficam preservados.


1ª Carta


Meu Caro amigo,

 

Não direi que fiquei surpreso com sua carta quando me diz que quer montar um haras para criar PSI. De há muito percebo seu entusiasmo, mas fiquei sim, surpreso, quando exige que eu faça sugestões dando mesmo orientação.

Não será tarefa fácil para mim, mas acho que será mais difícil para você. É claro que posso orientar pois tenho conhecimentos e experiência no assunto, mas confesso que este conhecimento, que não é pequeno, serve mais para me dar uma ideia do que ignoro, o que é muito grande.

Há alguns anos atrás, montar um haras era brincadeira de rico. Hoje não é mais. Assim, soube-se que é um investimento lucrativo a médio prazo. Os norte-americanos tinham isenção de impostos para montar um haras durante 5 anos e após este prazo o fisco os taxava convenientemente. Nós todos reconhecemos o espírito prático dos norte-americanos e consequentemente a conclusão de que o investimento é lucrativo a médio prazo.

No entanto é principal a boa escolha do plantel, de onde virá o sucesso nas pistas e o  consequente sucesso econômico. Porém temos que cuidar antes da localização, capacidade, área e construções.

Mal ordenando as ideias para escrever, chega a sua segunda carta onde me diz que está vendo terras na Serra dos Órgãos. Então já escolheu o local. Não é ruim, é próximo do Rio, mas calma meu amigo, não se apresse e quanto melhor estudar todos os aspectos melhor será o resultado.

Procure desde já se imbuir de paciência e humildade. A atividade a que você vai dedicar grande parte do seu tempo e dinheiro é uma escola de humildade, virtude que aconselho a cultivar desde já. Ela vai contrastar de muito com a vida que deu a você tanta independência e recursos. O turfe (criação e corridas) é das mais lindas atividades. Como negócio você compra, vende, troca, arrenda e outros mais. Como esporte você terá grandes satisfações de vaidade entremeadas de insucessos que precisam ser avaliados de forma humilde. Mas, vamos à localização.

O investimento na terra, onde quer que o localize será lucrativo, terra nunca perde valor. Mas a zona própria para criação do PSI são as planuras da campanha gaúcha. Nos municípios que conheço e dos que tenho informações fidedignas a implementação dos diversos tipos de trevos, gênero Trifolium, mais azevém (Lolium multiflorum), cornichão (Lotus corniculatus), somados as nativas cevadilha (Bromus catharticus) e diversos tipos  de gramíneas dos gêneros Paspalum, Phalaris, etc, oferecem condições magníficas para a criação do cavalo. E caso essas pradarias sejam adubadas e corrigidas em seu Ph, melhor ainda ficarão e o verdadeiro habitat do cavalo será restabelecido. O regime de criação em liberdade, para não usar a expressão extensiva passa a ser exequível e também correto será só dar o grão aos potros após um ano de idade, isto é, quando começam os exercícios sob o comando do homem. Lá é fácil obter nos piquetes a relação de 60/70% de gramíneas para 30/40% de leguminosas.

No entanto você pode criar na Serra. No próprio Rio Grande do Sul, no planalto serrano de Vacaria foi instalado o Haras São Luiz que já está produzindo animais de alta qualidade. Antes dele já se criava bons cavalos nestas pradarias de altitude que vão até Ponta Grossa no Paraná, com altitude média de cerca de 1.000 metros, a Fazenda Santa Ângela é um exemplo. No entanto  é indispensável a correção da acidez do solo e o plantio de gramíneas e leguminosas de inverno.  Tive a ventura de ir ao Haras São Luiz no primeiro ano de sua instalação e pude apreciar o trabalho de recomposição daquelas terras feito por competente agrônomo e supervisionado pelo Dr. Arturo Andwanter Paz, figura exponencial no nosso meio de élevage. Gostaria, meu bom amigo, que você fizesse uma visita a alguns haras, São Luiz, Fronteira, Sideral e Mondesir, para avaliar in locum o valor nutritivo dessas pastagens. A pastagem é o principal na criação do cavalo de corrida.

Na Serra dos Órgãos, em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, a altitude fica entre 800 e 1.000 metros e portanto não há objeção. É próximo ao Rio o que permitirá justificar o investimento como lazer, e nada mais agradável do que subir os fins de semana para gozar um prazer que é dito “dos deuses”, como o de criar cavalos puro sangue de corrida. Assim você ficará como os turfmans paulistas de bom gosto que criam nas cercanias de Campinas, que tem 700 metros de altitude e dista uma hora de São Paulo, permitindo agradáveis jornadas de fins de semana e até visitas diárias.

Na Serra, você terá uma vantagem sobre os sulistas, que é a água. Impossível que na propriedade que adquirir não existam nascentes com água de extrema qualidade em sais minerais e isto é muito importante para a criação do cavalo puro sangue de corrida.

A área mínima para montar um haras de 20 éguas é de 20 hectares em pastagens, desde que em propriedades bem conduzidas, ou seja, a relação a se considerar é a de 1.0 hectare para cada égua. Devemos lembrar que um haras é uma atividade de pecuária intensiva e que a propriedade deve ser altamente tecnificada quanto ao trato de suas pastagens e manejo animal.

Nessa região montanhosa as várzeas são pequenas e consequentemente o número ideal de éguas que irá formar o seu plantel deverá respeitar a relação acima citada. Talvez seja possível terraplenar alguns locais para aumento da área de pastagens, porém seguido de cuidados especiais que detalharei na oportunidade.

Por quê um haras de 20 éguas? Porque na Europa, diz-se que um stud-groom capacitado cuida bem de 20 éguas. Em 1967 a organização Aga Khan tinha 7 haras com capacidade, cada um, para 20 éguas, sendo 4 na Irlanda e 3 na França. Em cada haras, quase sempre, estava estacionado um garanhão e nesse ano em Marly-La-Ville, vi o Venture VII, pai do excelente Locris.

É claro que existem haras de mais de 100 éguas como o São José & Expedictus, São Luiz, Fronteira e Mondesir, mas além de exigirem grandes extensões de terras exigem uma organização empresarial. É indispensável um veterinário residente e mais de um stud-groom em propriedades de tal porte.

Estou entre aqueles que acham que um haras deve ser obra de um só, isto é, um verdadeiro artesanato. Na Inglaterra você encontra um número elevadíssimo de organizações desse tipo. Infelizmente, no Brasil, não podemos encontrar facilmente uma pessoa que tenha posses para adquirir ou organizar um haras, tenha gosto para procurar conhecer o cavalo PSI e tenha aquele “algo mais” que tanto enriquece a apreciação do animal. Enfim, tenha feeling.

Na Europa os proprietários de haras, de forma geral, possuem grande cultura turfística, são respeitados e mesmo consagrados nas vitórias nas pistas e estatísticas. Mas trata-se com respeitosa admiração aqueles que dirigem os haras e criam realmente os bons cavalos. Quando o proprietário é realmente o criador e bom, chega-se ao ideal e a consagração. É o caso de FREDERICO TESIO e do príncipe ALY KHAN, ambos notáveis criadores, cavaleiros e conhecedores de treinamento. Verdadeiros  “homens do cavalo”. Sendo que Tesio era realmente o treinador dos seus cavalos em corrida. O príncipe Aly muito deve ter aprendido com Lottery, que foi durante mais de 15 anos, desde o tempo do seu pai - S.A. Aga Khan III, o orientador de plantel da coudelaria.

LOTTERY (pseudônimo do tenente-coronel J. Vuillier) foi oficial de cavalaria, saído de Saint-Cyr, e com sua reforma se dedicou inteiramente ao estudo genealógico do PSI, criando o seu famoso Sistema de Dosagens. Após a primeira guerra mundial Lottery foi convidado por S.A. Aga Khan III para dirigir a genética de sua criação. Pouco antes dessa importante decisão, nos conta M. Portefin, que se encontrara com Lottery logo após ele ter tido a entrevista com o potentado indiano e que preso do mais vivo entusiasmo disse-lhe: “L’Aga Khan est um type épatant; je vois ce qu’il veut faire. Il aura dans quelque temps la meilleure écurie du monde, vous m’entendez... du monde!!” E assim foi.

Em relação ao Derby Stakes, o maior clássico do mundo para animais de 3 anos, objetivo maior dos criadores ingleses, a coudelaria em 1925 tirou 2º com Zionist, em 1930 venceu com Blenheim, em 1932 tirou 2º com Dastur, em 1935 venceu com Bahram, em 1936 venceu com Mahmoud e tirou 2º com Taj Akbar, sendo que esta notável performance já não foi assistida por Lottery. Após sua morte, sua esposa Mme. Vuillier assumiu a direção da então maior coudelaria do mundo, a quem seu marido dera por mais de 15 anos o melhor do seu conhecimento e o melhor do seu entusiasmo. Lottery possuía aquela sensibilidade acurada para perceber a qualidade de um PSI. Fosse na compra de um garanhão a baixo preço  que viria a produzir bem, fosse na seleção dos melhores 2 anos para corrida. Vários fatos comprovam este “algo mais” que ele enriquecia com profundo conhecimento genealógico do puro sangue de corrida.

Causou emoção e admiração a nobre atitude do Aga Khan III mantendo a esposa de Lottery à testa de sua organização turfística. Os sucessos continuaram , pois em 1940 Turkhan tirou 2º no Derby Stakes, em 1943 tiraram 2º com Umiddad e 3º com Nasrullah. Em 1944 tirou 2º com Tehran. Em 1947 foi 2º com Migoli e em 1952 nova vitória com Tulyar. Não incluímos a vitória de My Love em 1948 pois apesar de correr defendendo as cores da coudelaria, não era de sua criação e sim pertencia em co-propriedade à seu criador M. Leon Volterra.

Frederico Tesio, o maior entre os maiores criadores do mundo, escreveu um livro publicado em 1956 “IL PUROSANGUE” que você deve fazer tudo para ler e eu lhe presentearei um exemplar quando de minha próxima viagem ao Rio. De fatos pitorescos até experimentos (hipóteses de trabalho) para serem investigadas por aqueles que tenham elementos e tecnologia para isso. Desde a paixão à primeira vista da Signorina, a historinha árabe da resistência do cavalo castanho, a miopia do cavalo e a sua inteligência igual ou maior que a do cachorro, mas lamentando o seu tamanho, que impede de colocá-lo na sala de visitas. E outras mais, culminando na hipótese do sexto sentido, por uma espécie de radar nas orelhas do animal. Um livro maravilhoso para os amantes do cavalo; o seu futuro exemplar é escrito no original, em italiano, mas ele existe traduzido para o inglês e espanhol, esse último creio que feita na Venezuela. Como sempre nada em português e assim se mantém o nosso turfista em maioria ignorante e portanto pretencioso. Aquele que quer aprender não tem onde. Livros como “Le Cheval de Course” (Gobert e Cagny), “Bloodstock Breeding” (Sir Charles Leicester) e os de Fournier (Ormonde) que julgamos básicos para o criador, não encontram editores no Brasil e os Jockeys Clubs se negam a contribuir nas edições como ocorreu há cerca de 12 anos quando uma junta de criadores propôs parceria junto ao JCB e JCSP para tradução e edição de alguns desses livros.

E assim segue o nosso turfe, não saindo da 3ª categoria, mal dirigido, mal programado e vivendo de boas iniciativas de um ou outro privilegiado.

 

Reynato Sodré Borges

Tebas - março - 1979







sexta-feira, 7 de abril de 2023

King Kamehameha, o grande "pai de pais" do turfe japonês

 



Como atleta KING KAMEHAMEHA, nascido em 2001, foi esplêndido. Em 8 partidas obteve 7 vitórias e 1 terceiro lugar. Pertenceu a uma das mais fortes gerações nascidas nesse século no Japão, das quais fizeram parte indivíduos como Heart's Cry, Daiwa Major, Delta Blues, Higher Game, Company, Cosmo Bulk, etc. 

Campanha:

1º Tokyo Yushun (Japanese Derby), Gr.1, grama, 2.400m,

1º NHK Mile Cup, Gr.1, grama, 1.600m,

1º Kobe Shimbun Hai, Gr.2, grama, 2.000m,

1º Mainichi Hai, Gr.3, grama, 2.000m,

1º Sumire Stakes, LR, grama, 2.200m,

1º Erica Sho, grama, 2.000m,

1º Prova para estreantes, grama, 1.800m e

3º Keisei Hai, Gr.3, grama, 2.000m.


Em sua carreira como garanhão foi o líder das estatísticas em 2010 e 2011, produziu até o momento 67 graded stakes winners, 32 listed winners e 166 stakes winners. Mas, alcançou o estrelato maior no élevage de seu país ao se tornar um dos mais importantes avôs maternos que a criação japonesa já conheceu.

Em 2023 é o líder das estatísticas gerais de avô materno, venceu essas estatísticas em 2020, 2021 e 2022, foi 2º colocado em 2019 e 3º colocado em 2018. 

KING KAMEHAMEHA atingiu um patamar mais extraordinário ainda quando seus filhos foram alçados a reprodução, e com suas produções passaram a dominar o cenário turfístico japonês. O que o credenciou a ser reconhecido como um "pai de pais", ou seja, um garanhão cujos filhos são produtores extremamente positivos de vencedores. O que se chama "dominância linear masculina", um dos principais atributos de um chefe de raça.

KING KAMEHAMEHA - SUNDAY SILENCE e NORTHERN TASTE são reconhecidos pela comunidade turfística japonesa como o triunvirato de garanhões responsável por colocar o nome do Japão no primeiro mundo do turfe.


Nesse momento, na estatística geral japonesa, seu filho LORD KANALOA, garanhão da Shadai Farm, é o líder absoluto, possuindo um fee de US$ 100.000. É o 2º colocado na estatística grama e 3º colocado na estatística dirt.




O 2º colocado nas estatísticas gerais japonesas é o seu também filho DURAMENTE, que infelizmente morreu em 2021, aos 9 anos de idade, vitimado por cólicas. Em vida pertencia ao time de garanhões da Shadai. É no momento o 3º colocado na estatística grama e 9º colocado na estatística dirt.




O 8º colocado nas estatísticas gerais japonesas é RULERSHIP, também seu filho e garanhão do time Shadai Farm. É o 5º colocado na estatística grama.




Na estatística dirt seu filho HOKKO TARUMAE é o 5º colocado.




KING KAMEHAMEHA é na atualidade, de forma indiscutível, o garanhão mais influente na criação japonesa quanto a alinhamento masculino. Sendo um digno sucessor do notável SUNDAY SILENCE, como este sucedeu ao não menos notável NORTHERN TASTE. 


Acreditamos, que já passou da hora, da criação brasileira incorporar em seu pool de garanhões um bom KING KAMEHAMEHA ou algum filho de seus notáveis filhos.