Na foto o craque Arnaldo, fruto de um cruzamento que Dr. Reynato considerava sua obra-prima.
No longínquo ano de 1973, o senhor Atualpa Soares me apresentou ao Dr. Reynato Sodré Borges, e daí frutificou uma relação que pode-se considerar quase que paterna, inclusive Dr. Reynato carinhosamente me chamava de seu "filho turfístico". Daí foram uma sequência de acontecimentos, comecei a frequentar as memoráveis reuniões dos sábados de manhã na cocheira do Haras Santa Annita - Dr. Carlos Gilberto da Rocha Faria - e assistir as corridas na mesa Rocha Faria nas tribunas sociais do JCB, sempre frequentada por nomes como os de Roberto e Nelson Seabra, José Albano da Nova Monteiro, Mariano Raggio, Afonso Burlamaqui, Bertrand Kauffmann, Amilcar Turner de Freitas, Sergio Cartier, Leonídio Ribeiro, Gustavo Philadelpho, Franco Varola, John Aiscan, etc. Um manancial inesgotável de conhecimento turfístico.
Insistia constantemente com Dr. Reynato para que escrevesse suas considerações sobre turfe e ele sempre refratário a ideia. Naquela época Dr. Reynato já havia deixado a diretoria técnica do Haras Tibagi, o qual ajudou a fundar, e prestava seus conhecimentos a Mariano Raggio em seu Haras Sideral - atual Haras Doce Vale.
Com o encerramento das atividades do Haras Sideral, ele foi residir em Tebas, na Zona da Mata Mineira, e continuou frequentando o Hipódromo da Gávea toda vez que ia ao Rio visitar a filha ou sua irmã.
Certo dia recebi uma carta do Dr. Reynato, na qual explicava que para ele era mais fácil escrever em tom coloquial e estaria me enviando uma série de cartas nas quais trataria da montagem de um haras ficcional e assim discorreria sobre o tema.
Essas cartas, em número de 11, começaram a chegar em março de 1979 e findaram em setembro do mesmo ano, pois Dr. Reynato veio a falecer no início de outubro.
Como um tributo a sua memória essas cartas serão publicadas aqui no blog, mal ou bem, algo de seus pensamentos ficam preservados.
1ª Carta
Meu Caro amigo,
Não direi que fiquei surpreso com sua carta quando me diz
que quer montar um haras para criar PSI. De há muito percebo seu entusiasmo,
mas fiquei sim, surpreso, quando exige que eu faça sugestões dando mesmo
orientação.
Não será tarefa fácil para mim, mas acho que será mais
difícil para você. É claro que posso orientar pois tenho conhecimentos e
experiência no assunto, mas confesso que este conhecimento, que não é pequeno,
serve mais para me dar uma ideia do que ignoro, o que é muito grande.
Há alguns anos atrás, montar um haras era brincadeira de
rico. Hoje não é mais. Assim, soube-se que é um investimento lucrativo a médio
prazo. Os norte-americanos tinham isenção de impostos para montar um haras
durante 5 anos e após este prazo o fisco os taxava convenientemente. Nós todos
reconhecemos o espírito prático dos norte-americanos e consequentemente a
conclusão de que o investimento é lucrativo a médio prazo.
No entanto é principal a boa escolha do plantel, de onde
virá o sucesso nas pistas e o
consequente sucesso econômico. Porém temos que cuidar antes da
localização, capacidade, área e construções.
Mal ordenando as ideias para escrever, chega a sua
segunda carta onde me diz que está vendo terras na Serra dos Órgãos. Então já
escolheu o local. Não é ruim, é próximo do Rio, mas calma meu amigo, não se
apresse e quanto melhor estudar todos os aspectos melhor será o resultado.
Procure desde já se imbuir de paciência e humildade. A
atividade a que você vai dedicar grande parte do seu tempo e dinheiro é uma
escola de humildade, virtude que aconselho a cultivar desde já. Ela vai
contrastar de muito com a vida que deu a você tanta independência e recursos. O
turfe (criação e corridas) é das mais lindas atividades. Como negócio você
compra, vende, troca, arrenda e outros mais. Como esporte você terá grandes
satisfações de vaidade entremeadas de insucessos que precisam ser avaliados de
forma humilde. Mas, vamos à localização.
O investimento na terra, onde quer que o localize será
lucrativo, terra nunca perde valor. Mas a zona própria para criação do PSI são
as planuras da campanha gaúcha. Nos municípios que conheço e dos que tenho
informações fidedignas a implementação dos diversos tipos de trevos, gênero Trifolium,
mais azevém (Lolium multiflorum), cornichão (Lotus corniculatus), somados as
nativas cevadilha (Bromus catharticus) e diversos tipos de gramíneas dos gêneros Paspalum, Phalaris,
etc, oferecem condições magníficas para a criação do cavalo. E caso essas
pradarias sejam adubadas e corrigidas em seu Ph, melhor ainda ficarão e o
verdadeiro habitat do cavalo será restabelecido. O regime de criação em
liberdade, para não usar a expressão extensiva passa a ser exequível e também
correto será só dar o grão aos potros após um ano de idade, isto é, quando
começam os exercícios sob o comando do homem. Lá é fácil obter nos piquetes a
relação de 60/70% de gramíneas para 30/40% de leguminosas.
No entanto você pode criar na Serra. No próprio Rio
Grande do Sul, no planalto serrano de Vacaria foi instalado o Haras São Luiz
que já está produzindo animais de alta qualidade. Antes dele já se criava bons
cavalos nestas pradarias de altitude que vão até Ponta Grossa no Paraná, com
altitude média de cerca de 1.000 metros, a Fazenda Santa Ângela é um exemplo. No entanto é indispensável a correção da acidez do solo
e o plantio de gramíneas e leguminosas de inverno. Tive a ventura de ir ao Haras São Luiz no
primeiro ano de sua instalação e pude apreciar o trabalho de recomposição
daquelas terras feito por competente agrônomo e supervisionado pelo Dr. Arturo
Andwanter Paz, figura exponencial no nosso meio de élevage. Gostaria, meu bom amigo, que você fizesse uma visita a
alguns haras, São Luiz, Fronteira, Sideral e Mondesir, para avaliar in locum o valor nutritivo dessas
pastagens. A pastagem é o principal na criação do cavalo de corrida.
Na Serra dos Órgãos, em Petrópolis, Teresópolis e
Nova Friburgo, a altitude fica entre 800 e 1.000 metros e portanto não há
objeção. É próximo ao Rio o que permitirá justificar o investimento como lazer,
e nada mais agradável do que subir os fins de semana para gozar um prazer que é
dito “dos deuses”, como o de criar cavalos puro sangue de corrida. Assim você
ficará como os turfmans paulistas de bom gosto que criam nas cercanias de
Campinas, que tem 700 metros de altitude e dista uma hora de São Paulo,
permitindo agradáveis jornadas de fins de semana e até visitas diárias.
Na Serra, você terá uma vantagem sobre os sulistas, que é
a água. Impossível que na propriedade que adquirir não existam nascentes com
água de extrema qualidade em sais minerais e isto é muito importante para a
criação do cavalo puro sangue de corrida.
A área mínima para montar um
haras de 20 éguas é de 20 hectares em pastagens, desde que em propriedades bem
conduzidas, ou seja, a relação a se considerar é a de 1.0 hectare para cada
égua. Devemos lembrar que um haras é uma atividade de pecuária intensiva e que
a propriedade deve ser altamente tecnificada quanto ao trato de suas pastagens
e manejo animal.
Nessa região montanhosa as
várzeas são pequenas e consequentemente o número ideal de éguas que irá formar
o seu plantel deverá respeitar a relação acima citada. Talvez seja possível
terraplenar alguns locais para aumento da área de pastagens, porém seguido de
cuidados especiais que detalharei na oportunidade.
Por quê um haras de 20
éguas? Porque na Europa, diz-se que um stud-groom
capacitado cuida bem de 20 éguas. Em 1967 a organização Aga Khan tinha 7 haras
com capacidade, cada um, para 20 éguas, sendo 4 na Irlanda e 3 na França. Em
cada haras, quase sempre, estava estacionado um garanhão e nesse ano em
Marly-La-Ville, vi o Venture VII, pai do excelente Locris.
É claro que existem haras de
mais de 100 éguas como o São José & Expedictus, São Luiz, Fronteira e Mondesir, mas além de exigirem
grandes extensões de terras exigem uma organização empresarial. É indispensável
um veterinário residente e mais de um stud-groom em propriedades de tal porte.
Estou entre aqueles que
acham que um haras deve ser obra de um só, isto é, um verdadeiro artesanato. Na
Inglaterra você encontra um número elevadíssimo de organizações desse tipo. Infelizmente, no Brasil, não
podemos encontrar facilmente uma pessoa que tenha posses para adquirir ou
organizar um haras, tenha gosto para procurar conhecer o cavalo PSI e tenha
aquele “algo mais” que tanto enriquece a apreciação do animal. Enfim, tenha feeling.
Na Europa os proprietários
de haras, de forma geral, possuem grande cultura turfística, são respeitados e mesmo consagrados nas vitórias nas pistas e
estatísticas. Mas trata-se com respeitosa admiração aqueles que dirigem os
haras e criam realmente os bons cavalos. Quando o proprietário é realmente o
criador e bom, chega-se ao ideal e a consagração. É o caso de FREDERICO TESIO e
do príncipe ALY KHAN, ambos notáveis criadores, cavaleiros e conhecedores de treinamento.
Verdadeiros “homens do cavalo”. Sendo
que Tesio era realmente o treinador dos seus cavalos em corrida. O príncipe Aly
muito deve ter aprendido com Lottery, que foi durante mais de 15 anos, desde o tempo do seu pai - S.A. Aga Khan III, o
orientador de plantel da coudelaria.
LOTTERY (pseudônimo do
tenente-coronel J. Vuillier) foi oficial de cavalaria, saído de Saint-Cyr, e
com sua reforma se dedicou inteiramente ao estudo genealógico do PSI, criando o
seu famoso Sistema de Dosagens. Após a primeira guerra mundial Lottery foi
convidado por S.A. Aga Khan III para dirigir a genética de sua criação. Pouco
antes dessa importante decisão, nos conta M. Portefin, que se encontrara com
Lottery logo após ele ter tido a entrevista com o potentado indiano e que preso
do mais vivo entusiasmo disse-lhe: “L’Aga Khan est um type épatant; je vois ce
qu’il veut faire. Il aura dans quelque temps la meilleure écurie du monde, vous
m’entendez... du monde!!” E assim foi.
Em relação ao Derby Stakes,
o maior clássico do mundo para animais de 3 anos, objetivo maior dos criadores
ingleses, a coudelaria em 1925 tirou 2º com Zionist, em 1930 venceu com
Blenheim, em 1932 tirou 2º com Dastur, em 1935 venceu com Bahram, em 1936
venceu com Mahmoud e tirou 2º com Taj Akbar, sendo que esta notável performance
já não foi assistida por Lottery. Após sua morte, sua esposa Mme. Vuillier
assumiu a direção da então maior coudelaria do mundo, a quem seu marido dera
por mais de 15 anos o melhor do seu conhecimento e o melhor do seu entusiasmo.
Lottery possuía aquela sensibilidade acurada para perceber a qualidade de um
PSI. Fosse na compra de um garanhão a baixo preço que viria a produzir bem, fosse na seleção
dos melhores 2 anos para corrida. Vários fatos comprovam este “algo mais” que
ele enriquecia com profundo conhecimento genealógico do puro sangue de corrida.
Causou emoção e admiração a
nobre atitude do Aga Khan III mantendo a esposa de Lottery à testa de sua
organização turfística. Os sucessos continuaram , pois em 1940 Turkhan tirou 2º
no Derby Stakes, em 1943 tiraram 2º com Umiddad e 3º com Nasrullah. Em 1944
tirou 2º com Tehran. Em 1947 foi 2º com Migoli e em 1952 nova vitória com
Tulyar. Não incluímos a vitória de My Love em 1948 pois apesar de correr
defendendo as cores da coudelaria, não era de sua criação e sim pertencia em co-propriedade
à seu criador M. Leon Volterra.
Frederico Tesio, o maior
entre os maiores criadores do mundo, escreveu um livro publicado em 1956 “IL
PUROSANGUE” que você deve fazer tudo para ler e eu lhe presentearei um exemplar
quando de minha próxima viagem ao Rio. De fatos pitorescos até experimentos
(hipóteses de trabalho) para serem investigadas por aqueles que tenham
elementos e tecnologia para isso. Desde a paixão à primeira vista da Signorina,
a historinha árabe da resistência do cavalo castanho, a miopia do cavalo e a
sua inteligência igual ou maior que a do cachorro, mas lamentando o seu
tamanho, que impede de colocá-lo na sala de visitas. E outras mais, culminando
na hipótese do sexto sentido, por uma espécie de radar nas orelhas do animal.
Um livro maravilhoso para os amantes do cavalo; o seu futuro exemplar é escrito
no original, em italiano, mas ele existe traduzido para o inglês e espanhol,
esse último creio que feita na Venezuela. Como sempre nada em português e assim
se mantém o nosso turfista em maioria ignorante e portanto pretencioso. Aquele
que quer aprender não tem onde. Livros como “Le Cheval de Course” (Gobert e
Cagny), “Bloodstock Breeding” (Sir Charles Leicester) e os de Fournier (Ormonde) que
julgamos básicos para o criador, não encontram editores no Brasil e os Jockeys
Clubs se negam a contribuir nas edições como ocorreu há cerca de 12 anos quando
uma junta de criadores propôs parceria junto ao JCB e JCSP para tradução e
edição de alguns desses livros.
E assim segue o nosso turfe,
não saindo da 3ª categoria, mal dirigido, mal programado e vivendo de boas
iniciativas de um ou outro privilegiado.
Reynato Sodré Borges
Tebas - março - 1979