quarta-feira, 12 de abril de 2023

Reynato Sodré Borges - 1ª carta

 

  

Na foto o craque Arnaldo, fruto de um cruzamento que Dr. Reynato considerava sua obra-prima.


No longínquo ano de 1973, o senhor Atualpa Soares me apresentou  ao Dr. Reynato Sodré Borges, e daí frutificou uma relação que pode-se considerar quase que paterna, inclusive Dr. Reynato carinhosamente me chamava de seu "filho turfístico". Daí foram uma sequência de acontecimentos, comecei a frequentar as memoráveis reuniões dos sábados de manhã na cocheira do Haras Santa Annita - Dr. Carlos Gilberto da Rocha Faria - e assistir as corridas na mesa Rocha Faria nas tribunas sociais do JCB, sempre frequentada por nomes como os de Roberto e Nelson Seabra, José Albano da Nova Monteiro, Mariano Raggio, Afonso Burlamaqui, Bertrand Kauffmann, Amilcar Turner de Freitas, Sergio Cartier, Leonídio Ribeiro, Gustavo Philadelpho, Franco Varola, John Aiscan, etc. Um manancial inesgotável de conhecimento turfístico.

Insistia constantemente com Dr. Reynato para que escrevesse suas considerações sobre turfe e ele sempre refratário a ideia. Naquela época Dr. Reynato já havia deixado a diretoria técnica do Haras Tibagi, o qual ajudou a fundar, e prestava seus conhecimentos a Mariano Raggio em seu Haras Sideral - atual Haras Doce Vale. 

Com o encerramento das atividades do Haras Sideral, ele foi residir em Tebas, na Zona da Mata Mineira, e continuou frequentando o Hipódromo da Gávea toda vez que ia ao Rio visitar a filha ou sua irmã.

Certo dia recebi uma carta do Dr. Reynato, na qual explicava que para ele era mais fácil escrever em tom coloquial e estaria me enviando uma série de cartas nas quais trataria da montagem de um haras ficcional e assim discorreria sobre o tema. 

Essas cartas, em número de 11, começaram a chegar em março de 1979 e findaram em setembro do mesmo ano, pois Dr. Reynato veio a falecer no início de outubro. 

Como um tributo a sua memória essas cartas serão publicadas aqui no blog, mal ou bem, algo de seus pensamentos ficam preservados.


1ª Carta


Meu Caro amigo,

 

Não direi que fiquei surpreso com sua carta quando me diz que quer montar um haras para criar PSI. De há muito percebo seu entusiasmo, mas fiquei sim, surpreso, quando exige que eu faça sugestões dando mesmo orientação.

Não será tarefa fácil para mim, mas acho que será mais difícil para você. É claro que posso orientar pois tenho conhecimentos e experiência no assunto, mas confesso que este conhecimento, que não é pequeno, serve mais para me dar uma ideia do que ignoro, o que é muito grande.

Há alguns anos atrás, montar um haras era brincadeira de rico. Hoje não é mais. Assim, soube-se que é um investimento lucrativo a médio prazo. Os norte-americanos tinham isenção de impostos para montar um haras durante 5 anos e após este prazo o fisco os taxava convenientemente. Nós todos reconhecemos o espírito prático dos norte-americanos e consequentemente a conclusão de que o investimento é lucrativo a médio prazo.

No entanto é principal a boa escolha do plantel, de onde virá o sucesso nas pistas e o  consequente sucesso econômico. Porém temos que cuidar antes da localização, capacidade, área e construções.

Mal ordenando as ideias para escrever, chega a sua segunda carta onde me diz que está vendo terras na Serra dos Órgãos. Então já escolheu o local. Não é ruim, é próximo do Rio, mas calma meu amigo, não se apresse e quanto melhor estudar todos os aspectos melhor será o resultado.

Procure desde já se imbuir de paciência e humildade. A atividade a que você vai dedicar grande parte do seu tempo e dinheiro é uma escola de humildade, virtude que aconselho a cultivar desde já. Ela vai contrastar de muito com a vida que deu a você tanta independência e recursos. O turfe (criação e corridas) é das mais lindas atividades. Como negócio você compra, vende, troca, arrenda e outros mais. Como esporte você terá grandes satisfações de vaidade entremeadas de insucessos que precisam ser avaliados de forma humilde. Mas, vamos à localização.

O investimento na terra, onde quer que o localize será lucrativo, terra nunca perde valor. Mas a zona própria para criação do PSI são as planuras da campanha gaúcha. Nos municípios que conheço e dos que tenho informações fidedignas a implementação dos diversos tipos de trevos, gênero Trifolium, mais azevém (Lolium multiflorum), cornichão (Lotus corniculatus), somados as nativas cevadilha (Bromus catharticus) e diversos tipos  de gramíneas dos gêneros Paspalum, Phalaris, etc, oferecem condições magníficas para a criação do cavalo. E caso essas pradarias sejam adubadas e corrigidas em seu Ph, melhor ainda ficarão e o verdadeiro habitat do cavalo será restabelecido. O regime de criação em liberdade, para não usar a expressão extensiva passa a ser exequível e também correto será só dar o grão aos potros após um ano de idade, isto é, quando começam os exercícios sob o comando do homem. Lá é fácil obter nos piquetes a relação de 60/70% de gramíneas para 30/40% de leguminosas.

No entanto você pode criar na Serra. No próprio Rio Grande do Sul, no planalto serrano de Vacaria foi instalado o Haras São Luiz que já está produzindo animais de alta qualidade. Antes dele já se criava bons cavalos nestas pradarias de altitude que vão até Ponta Grossa no Paraná, com altitude média de cerca de 1.000 metros, a Fazenda Santa Ângela é um exemplo. No entanto  é indispensável a correção da acidez do solo e o plantio de gramíneas e leguminosas de inverno.  Tive a ventura de ir ao Haras São Luiz no primeiro ano de sua instalação e pude apreciar o trabalho de recomposição daquelas terras feito por competente agrônomo e supervisionado pelo Dr. Arturo Andwanter Paz, figura exponencial no nosso meio de élevage. Gostaria, meu bom amigo, que você fizesse uma visita a alguns haras, São Luiz, Fronteira, Sideral e Mondesir, para avaliar in locum o valor nutritivo dessas pastagens. A pastagem é o principal na criação do cavalo de corrida.

Na Serra dos Órgãos, em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, a altitude fica entre 800 e 1.000 metros e portanto não há objeção. É próximo ao Rio o que permitirá justificar o investimento como lazer, e nada mais agradável do que subir os fins de semana para gozar um prazer que é dito “dos deuses”, como o de criar cavalos puro sangue de corrida. Assim você ficará como os turfmans paulistas de bom gosto que criam nas cercanias de Campinas, que tem 700 metros de altitude e dista uma hora de São Paulo, permitindo agradáveis jornadas de fins de semana e até visitas diárias.

Na Serra, você terá uma vantagem sobre os sulistas, que é a água. Impossível que na propriedade que adquirir não existam nascentes com água de extrema qualidade em sais minerais e isto é muito importante para a criação do cavalo puro sangue de corrida.

A área mínima para montar um haras de 20 éguas é de 20 hectares em pastagens, desde que em propriedades bem conduzidas, ou seja, a relação a se considerar é a de 1.0 hectare para cada égua. Devemos lembrar que um haras é uma atividade de pecuária intensiva e que a propriedade deve ser altamente tecnificada quanto ao trato de suas pastagens e manejo animal.

Nessa região montanhosa as várzeas são pequenas e consequentemente o número ideal de éguas que irá formar o seu plantel deverá respeitar a relação acima citada. Talvez seja possível terraplenar alguns locais para aumento da área de pastagens, porém seguido de cuidados especiais que detalharei na oportunidade.

Por quê um haras de 20 éguas? Porque na Europa, diz-se que um stud-groom capacitado cuida bem de 20 éguas. Em 1967 a organização Aga Khan tinha 7 haras com capacidade, cada um, para 20 éguas, sendo 4 na Irlanda e 3 na França. Em cada haras, quase sempre, estava estacionado um garanhão e nesse ano em Marly-La-Ville, vi o Venture VII, pai do excelente Locris.

É claro que existem haras de mais de 100 éguas como o São José & Expedictus, São Luiz, Fronteira e Mondesir, mas além de exigirem grandes extensões de terras exigem uma organização empresarial. É indispensável um veterinário residente e mais de um stud-groom em propriedades de tal porte.

Estou entre aqueles que acham que um haras deve ser obra de um só, isto é, um verdadeiro artesanato. Na Inglaterra você encontra um número elevadíssimo de organizações desse tipo. Infelizmente, no Brasil, não podemos encontrar facilmente uma pessoa que tenha posses para adquirir ou organizar um haras, tenha gosto para procurar conhecer o cavalo PSI e tenha aquele “algo mais” que tanto enriquece a apreciação do animal. Enfim, tenha feeling.

Na Europa os proprietários de haras, de forma geral, possuem grande cultura turfística, são respeitados e mesmo consagrados nas vitórias nas pistas e estatísticas. Mas trata-se com respeitosa admiração aqueles que dirigem os haras e criam realmente os bons cavalos. Quando o proprietário é realmente o criador e bom, chega-se ao ideal e a consagração. É o caso de FREDERICO TESIO e do príncipe ALY KHAN, ambos notáveis criadores, cavaleiros e conhecedores de treinamento. Verdadeiros  “homens do cavalo”. Sendo que Tesio era realmente o treinador dos seus cavalos em corrida. O príncipe Aly muito deve ter aprendido com Lottery, que foi durante mais de 15 anos, desde o tempo do seu pai - S.A. Aga Khan III, o orientador de plantel da coudelaria.

LOTTERY (pseudônimo do tenente-coronel J. Vuillier) foi oficial de cavalaria, saído de Saint-Cyr, e com sua reforma se dedicou inteiramente ao estudo genealógico do PSI, criando o seu famoso Sistema de Dosagens. Após a primeira guerra mundial Lottery foi convidado por S.A. Aga Khan III para dirigir a genética de sua criação. Pouco antes dessa importante decisão, nos conta M. Portefin, que se encontrara com Lottery logo após ele ter tido a entrevista com o potentado indiano e que preso do mais vivo entusiasmo disse-lhe: “L’Aga Khan est um type épatant; je vois ce qu’il veut faire. Il aura dans quelque temps la meilleure écurie du monde, vous m’entendez... du monde!!” E assim foi.

Em relação ao Derby Stakes, o maior clássico do mundo para animais de 3 anos, objetivo maior dos criadores ingleses, a coudelaria em 1925 tirou 2º com Zionist, em 1930 venceu com Blenheim, em 1932 tirou 2º com Dastur, em 1935 venceu com Bahram, em 1936 venceu com Mahmoud e tirou 2º com Taj Akbar, sendo que esta notável performance já não foi assistida por Lottery. Após sua morte, sua esposa Mme. Vuillier assumiu a direção da então maior coudelaria do mundo, a quem seu marido dera por mais de 15 anos o melhor do seu conhecimento e o melhor do seu entusiasmo. Lottery possuía aquela sensibilidade acurada para perceber a qualidade de um PSI. Fosse na compra de um garanhão a baixo preço  que viria a produzir bem, fosse na seleção dos melhores 2 anos para corrida. Vários fatos comprovam este “algo mais” que ele enriquecia com profundo conhecimento genealógico do puro sangue de corrida.

Causou emoção e admiração a nobre atitude do Aga Khan III mantendo a esposa de Lottery à testa de sua organização turfística. Os sucessos continuaram , pois em 1940 Turkhan tirou 2º no Derby Stakes, em 1943 tiraram 2º com Umiddad e 3º com Nasrullah. Em 1944 tirou 2º com Tehran. Em 1947 foi 2º com Migoli e em 1952 nova vitória com Tulyar. Não incluímos a vitória de My Love em 1948 pois apesar de correr defendendo as cores da coudelaria, não era de sua criação e sim pertencia em co-propriedade à seu criador M. Leon Volterra.

Frederico Tesio, o maior entre os maiores criadores do mundo, escreveu um livro publicado em 1956 “IL PUROSANGUE” que você deve fazer tudo para ler e eu lhe presentearei um exemplar quando de minha próxima viagem ao Rio. De fatos pitorescos até experimentos (hipóteses de trabalho) para serem investigadas por aqueles que tenham elementos e tecnologia para isso. Desde a paixão à primeira vista da Signorina, a historinha árabe da resistência do cavalo castanho, a miopia do cavalo e a sua inteligência igual ou maior que a do cachorro, mas lamentando o seu tamanho, que impede de colocá-lo na sala de visitas. E outras mais, culminando na hipótese do sexto sentido, por uma espécie de radar nas orelhas do animal. Um livro maravilhoso para os amantes do cavalo; o seu futuro exemplar é escrito no original, em italiano, mas ele existe traduzido para o inglês e espanhol, esse último creio que feita na Venezuela. Como sempre nada em português e assim se mantém o nosso turfista em maioria ignorante e portanto pretencioso. Aquele que quer aprender não tem onde. Livros como “Le Cheval de Course” (Gobert e Cagny), “Bloodstock Breeding” (Sir Charles Leicester) e os de Fournier (Ormonde) que julgamos básicos para o criador, não encontram editores no Brasil e os Jockeys Clubs se negam a contribuir nas edições como ocorreu há cerca de 12 anos quando uma junta de criadores propôs parceria junto ao JCB e JCSP para tradução e edição de alguns desses livros.

E assim segue o nosso turfe, não saindo da 3ª categoria, mal dirigido, mal programado e vivendo de boas iniciativas de um ou outro privilegiado.

 

Reynato Sodré Borges

Tebas - março - 1979