quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Franco Varola - Análise de tendências - 3ª parte

 


Fairway, um Chefe de Raça Brilhante, a despeito de ser irmão próprio de Pharos diferenciou-se dele tanto nas pistas como no haras. 



Pharos, um Chefe de Raça Intermediário. 



(continuação)


3ª Parte

 

A procura de dosagens atualizadas para a formação dos pedigrees clássicos é uma das exigências que mais se impõem aos criadores de puro-sangue de nossos dias. A obra de Vuillier merece prosseguimento, embora seu princípio de informação não possa ser aceito totalmente. Em outra oportunidade, afirmei que a obra de Vuillier é de grandíssima Importância histórica: permite-nos ver com grande clareza e simplicidade os elementos fundamentais para o desenvolvimento da raça até o fim do século XIX. Mas, no setor especifico das dosagens, somos hoje levados a manifestar uma certa reserva quanto ao critério rígido com que foram formuladas. Historicamente é exato dizer que Ben d'Or, Hampton, Isonomy, Hermit, Galopin e St. Simon são os elementos mais importantes do fim do século passado; mas, do ponto de vista prático do criador, é duvidoso que se possa afirmar que, por exemplo, um pedigree ideal deva conter 235 partes de Hermit só porque Hermit é um dos indivíduos historicamente fundamentais de sua época. 

O ideal no sentido genético coincidia, então, com a importância no sentido histórico, em uma proporção hoje não mais alcançada. A linearidade dos programas ingleses de corridas no fim do século XIX favorecia a identidade perfeita entre a corrida importante e o grande prêmio monetário, com a consequente identidade entre corrida importante com o cavalo importante, que por sua vez, criava a identidade entre cavalo importante e garanhão importante. Como as séries de Vuiller tomam em consideração apenas cavalos ingleses, pode-se afirmar que Ben d'Or, Galopin, etc., foram tanto corredores quanto garanhões importantes, porquanto geraram cavalos que podiam, por sua vez, distinguir-se somente vencendo as corridas importantes. Este equilíbrio perfeito hoje já não existe. Em primeiro lugar, o turfe inglês não é mais o único a fornecer nomes para as dosagens: é preciso, depois, tomar em consideração cavalos que se distinguiram, sob a égide e sistemas de corridas diferentes. Além disso, o garanhão importante do dia de hoje, com frequência, é tal em função de exigências que pouco ou nada têm em comum com as  exigências que, há oitenta anos, elevavam ao palco da fama garanhões como Hampton ou Isonomy. A "fashionality" de um garanhão inglês atual está com frequência em função da capacidade de produzir indivíduos procurados pelo mercado norte-americano. Enfim, temos hoje as provas com finalidade propagandística, sem verdadeira significação seletiva, cujos conspícuos prêmios podem elevar um garanhão bem acima de seus méritos seletivos. 

E eis que, devendo atualizar a série de Vuillier, surge espontânea a pergunta: é desejável recomendar uma dose de um reprodutor só pelo fato dele estar em evidência na Inglaterra ou alhures? Em outras palavras, o "fashionable sire" é por si elegível em uma atualização das séries de Vuillier? Ou não existem circunstâncias tais, no turfe de nossa época, que nos aconselham a caminhar com pés de chumbo antes de admitir uma identidade desse gênero? Convém observar que estas perguntas põem em jogo, nada mais nada menos, que o futuro da própria raça, pois é evidente que, se admitirmos que um reprodutor possa ser avaliado percentualmente nos pedigrees , não por ser importante, mas em função da natureza particular do cavalo que produz, praticamente acabamos por predispor em termos doutrinários a evolução da raça em um ou em outro sentido, e esta é uma consequência na qual não creio tivesse Vuillier pensado quando elaborou suas séries dos grandes cavalos do século XIX. 

Todos os estudos e todas pessoas que se preocupam com a sorte do puro-sangue estão de acordo que o grande mal do turfe contemporâneo é a cada vez mais acentuada produção do cavalo inconsistente tornado ídolo em detrimento do cavalo consistente.  Note-se que não estou falando em velocidade ou em fundo e nem mesmo de precocidade e tardeza; a questão é muito mais lmportante, Geralmente, identifica-se a velocidade com a falta de substância, mas isto é impreciso, como também é impreciso identificar a tardeza com a falta de velocidade, The Tetrarch é considerado, o cavalo mais veloz que já existiu; entretanto, sua função nos pedigrees é em sentido eminentemente construtivo; examinem-se cem, duzentos ou quantos pedigrees se deseje nos quais ele aparece, ver-se-á que sua presença é sempre a garantia de grandes dotes "morais" do produto que dele descende. No extremo oposto, Son-in-Law não impediu jamais a manifestação de valiosos dotes de velocidade nos produtos que dele descendem no setor feminino, e entre muitos casos o mais notável é o de Lady Juror, que sempre ofereceu um toque inconfundível de consistência.

Fairway e Pharos, eram irmãos próprios, mas manifestaram-se de formas opostas, seja na corrida como na raça. Fairway era  poderoso galopador, que percorria com êxito todas as distâncias e podia realizar qualquer proeza, mas no haras, produziu grande quantidade de cavalos inconsistentes que, por outro lado, favoreceram a grande difusão numérica e geográfica de sua descendência e ainda hoje e dificílimo encontrar um ramo de Fairway no qual se possa confiar completamente. Pharos entretanto, foi corredor mais modesto, não tão dotado de virtudes para grandes façanhas, embora resistente e consistente, mas ao sentido genealógico teve uma influência multo mais construtiva que Fairway, não só por ter produzido Nearco, Pharis e El Greco, mas também e principalmente por que o "inbreeding" de seu nome demonstrou ser fator de resistência, de dotes "morais" positivos e, em certo sentido, também de comportamento. Hoje, pelo menos um terço dos garanhões importantes que atuam na Inglaterra são descendentes diretos de Fairway ou de Pharos, mas os deste último são o dobro dos de Fairway. Criou-se, portanto, o problema do excesso de Phalaris, mas a seqüência Phalaris-Fairway tem uma significação duplamente negativa, enquanto a sequência Phalaris-Pharos contém dois nomes que, em certo sentido, se neutralizam reciprocamente.

A velocidade e o comportamento não são definitivos na avaliação de um reprodutor: se examinarmos bem a fundo, a verdadeira grande diferença entre um chefe-de-raça e um outro animal reside nos dotes "morais". Se hoje ficamos perplexos diante da carência de grandes cavalos verificada na Inglaterra, é por que a evolução do mecanismo hípico inglês favoreceu o aparecimento de reprodutores que falham em regularidade e em continuidade. O próprio Aureole, que colhe triunfos em cada geração, não nos deixa de todo satisfeitos, porquanto não consegue produzir uma fêmea de classe superior, ou que demasiados seus filhos não são consistentes por perderem facilmente a forma ou demonstram caráter com excesso de caprichos.

Enfim, Aureole parece estar ainda longe do paradigma do garanhão ideal; mas, poderiam perguntar-me, qual é esse paradigma?  Se considerarmos os resultados da pesquisa sobre a "expansão da população puro-sangue", o perigo das corridas que se bastam como simples corridas mesmo, que existe em muitos países,  e a necessidade de redescobrir o puro-sangue como animal adequado para todos os usos e tarefas em função da sociedade humana contemporânea,  diria que o critério fundamentaI para avaliar um reprodutor  como desejável ou não nas dosagens é se esse reprodutor é capaz de constituir elemento construtivo da consistência de um pedigree, ou em palavras ainda mais claras, se esse reprodutor é capaz, sozinho, de produzir o cavalo de corrida completo.

Na época do trabalho de Vuillier, repito, esta análise não tinha razão de ser; se Isonomy ou Bend'Or ou Galopin eram os elementos mais em evidência então, só por este fato foram considerados automaticaniente capazes de produzir o cavalo completo; mas hoje já não é mais assim e temos como exemplo os dois mais famosos reprodutores de nossos tempos: Hyperion e Nearco.

Contrariamente a moda atual, não creio absolutamente que Hyperion e Nearco, sozinhos, estejam em condições de assegurar, dentro da raça puro-sangue a realização do princípio darwiniano da "survivaI of the fittest". São grandemente solicitados (quero dizer, naturalmente, seus descendentes diretos) porque o puro-sangue hoje deve agradar o público e portanto os criadores devem procurar produzir um cavalo de utilização imediata, mas isso não significa que este tipo de cavalo seja necessariamente o melhor que se possa produzir. Aliás, se a grande razão junto aos criadores fosse a de recuperar o cavalo consistente (e creio que deva ser essa) seria preciso procurar manter a influência de Hyperion e Nearco em limites bem definidos. Hyperion em sua longuíssima  carreira de garanhão em Newmarket, jamais produziu um macho realmente compIeto comcorredor, não se podendo reconhecer como tal Owen Tudor e todos os seus descendentes: Abernant, Tudor Minstrel, King of The Tudors, que foram absolutamente incapazes de produzir cavalos que pudessem deter a invasão francesa nas corridas clássicas e de fundo. O produto mais eficiente de Hyperion foi uma fêmea, Sun Chariot. 

Nearco, em sua carreira um pouco mais curta mas não menos marcante de reprodutor, desenvolvida também em Newmarket, jamais gerou um animal capaz de exprimir valores absolutos aos quatro anos, e seus dois "derby-winners", Dante e Nimbus, foram produzidos por éguas oriundas de robustíssimas correntes de sangue. Tanto Hyperion quanto Nearco, porém, foram inigualáveis  produtores de cavalos brilhantes, sadios. manejáveis e lucrativos e por esta razão sua descendência propagou-se com rapidez extraordinária, especialmente nos Estados Unidos. Um inbreeding sobre Hyperion ou Nearco é a coisa mais normal que hoje se possa encontrar em um cavalo de boa criação, em qualquer parte do mundo, mas se me perguntarem se tal inbreeding é um título de valor para o elemento que o traz, ficaria um tanto embaraçado para responder. Certamente indica uma alta concentração de sangue nobre, mas é muito duvidoso que permita "exploits" excepcionais em corridas.

Nasrullah é resultante da união entre Nearco e uma filha do solidíssimo Blenheim e Never Say Die da união de Nasrullah com uma filha do solidíssimo War Admiral. Entre os grandes corredores dos últimos anos, e falo dos realizadores de grandes façanhas, não me parece constar nenhum cavalo    inbreed sobre Hyperion ou Nearco.

A questão complica-se ulteriormente pelo fato de que cada reprodutor, além do que ele mesmo representa, vale pelos nomes que apresenta em seu pedigree. Hyperion por exemplo, é filho de Gainsborough (por sua vez filho Bayardo) e de Selene, por sua vez filha de Chaucer. Os três são chefes-de-raça importantes, mas não só são diferentes de Hyperion em seu significado genético, mas cada um deles diferente um do outro. Gainsborough é um dos poucos exemplos perfeitos do reprodutor clássico de nosso século. Chaucer é um grande transmissor de fibra e de dotes "morais".  Bayardo é um elemento típico de resistência e de fundo.   Qualquer pedigree que traga o nome de Hyperion traz, portanto, juntamente com as dúvidas que este nome desperte no espirito do examinador existente, também os fatores positivos expressos por Gainsborough, Bayardo e Chaucer.  O caso de Nearco é análogo. É filho de Pharos (nascido de Phalaris e de uma filha de Chaucer) e de Nogara, nascida de Havresac II (filho de Rabelais) e de Catnip, filha de Spearmint.   São seis garanhões chefes-de-raça que se adicionam a Nearco em qualquer pedigree em que apareça o nome deste último e também eles diferenciam-se de Nearco quase na mesma proporção em que os antepassados de  Hyperion deste se diferenciam. O único que se pode comparar  a Nearco, na capacidade de produzir animais brilhantes e lucrativos é Phalaris.  Quanto aos outros, já conhecemos Chaucer, em cujo esquema "moral" podemos incluir Rabelais e Spearmint, enquanto Pharos e Havresac II já fazem parte de outro grupo, o dos reprodutores de tendência meio-fundistíca, porém possuidores de dotes "morais" de resistência e solidez superiores aos de Nearco e Phalaris.

Qualquer pedigree que se examine, como de garanhões chefes-de-raça, mostrará que os nomes consistentes são sempre em número superior aos nomes inconsistentes (emprego estas expressões para maior clareza e sem nenhuma intenção depreciativa), com poucas exceções de corredores ingleses nos quais as doses de Orby, Sir Cosmo, Fair Trial, etc, foram exageradas propositalmente para assim se obter especialistas de atitudes bem delimitadas. E o número dos nomes consistentes é superior porque só nos últimos anos surgiram na Inglaterra reprodutores nos quais a importância supera as capacidades genéticas. Na primeira parte do século, apenas Cicero e Orbit são culpáveis de tal desequilíbrio e somente com Phalaris (1913) temos o primeiro exemplo de reprodutor com triunfos em escala mundial e fora dos esquemas clássicos consagrados nas grandes provas de Newmarket, Epsom e Doncaster. Phalaris constitui a partida do grande ponto de inflexão da raça puro-sangue em direção à popularidade nos hipódromos de todo o mundo e a paralela inconsistência da raça. O movimento de recuperação do puro-sangue destina-se a ter um tom anti-phalarisiano, como é provado pelos numerosos expoentes da criação francesa que, com frequência, conquistam as provas mais difíceis e severas da Grã-Bretanha, literalmente passeando, no domínio dos produtos locais, que quase nunca ostentam Phalaris no pedigree e raramente Hyperion, enquanto os ingleses são abundantemente munidos de um e de outro; e darei exemplos disto proximamente.

Em suma, os cinquenta indivíduos que, por sua importância histórica, foram considerados dignos da qualificação de "Garanhões Chefes-de-Raça" de nosso século, não constituem um grupo homogeneo em termos de influência genética, mas pelo menos cinco grupos distintos que tentarei indicar da seguinte maneira:

BRILHANTES: Phalaris, Fairway, Hyperion, Nasrullah, Orby, Cicero, Fair Trial, Panorama todos ingleses, mais o francês Pharis e o italiano Nearco,

INTERMEDIÁRIOS: Os ingleses Pharos, The Tetrarch, King Salmon e Big Game, o norte-americano Black Toney, o argentino Congreve, o franco-italiano Havresac II e o alemão Ticino. 

CLÁSSICOS: As duas sequências inglesas Swynford -Blandford - Blenheim e Rock Sand - Tracery, além de Gainsborough , mais o francês Tourbillon, os norte-americanos Count Fleet e Bull Lea e o apolide Prince Rose.

ROBUSTOS: Aqui temos uma nítida predominância francesa. com Teddy, Asterus, Bois Roussel, Alcantara II, La Farina, Farina, Vatout, Chateâu Bouscaut, Admiral Drake e Ortello (italiano de nascimento, mas francês pelo sangue), aos quais acrescentamos os ingleses Chaucer, Rabelais, Spearmint e Sunstar, o alemão Oleander e o norte-americano Fair Play. O aspecto numérico deste grupo acentua o grande serviço prestado pela França na conservação de preciosas reservas de consistência.

PROFISSIONAIS: Com este nome indico um grupo de cavalos ingleses especialistas nas mais árduas tarefas: Dark Ronald, Son-in-Law, Precipitation, Hurry On, Alycidon, Bayardo e Solario. Desejo observar, entre parênteses, que um estudioso norte-americano fez um comentário a respeito de Dark Ronald que, segundo ele, era substancialmente um grande ''miler" e que foi adquirido pela Alemanha com base no seu esplêndido desempenho veloz na ''Royal Hunt Cup''. Resta porém o fato de que Dark Ronald gerou "stayers" e se continua através de "stayers" em todas as partes do mundo.

Embora esta subdivisão constitua apenas uma tentativa preliminar de formação (de novas sondagens), é certo que nos dá uma nova perspectiva na apreciação dos garanhões chefes-de-raça como elementos expressivos de um pedigree. Em outras palavras, não se trata mais de contar as presenças puras e simples destes garanhões como era possível e legitimo na época examinada por Vuillier, mas de avaliar o que exatamente cada um deles possa significar. A divisão em grupos segue, com efeito, um critério de gradatividade, passando do mais brilhante ao mais consistente através do ponto central do classicismo ortodoxo. E é significativo que os garanhões do primeiro grupamento (brilhantes) estejam quase todos cronologicamente próximos de nós, enquanto os garanhões dos últimos grupos estão todos remotos no tempo, com uma única exceção, a de Alycidon. Também poder-se-ia dizer que estes cinco grupos de garanhões são as cinco maneiras de ser do puro-sangue. Um pedigree poderia ser avaliado segundo as presenças de cada um dos cinco grupos e segundo tais presenças se concentrem mais em direção a ala direita, ao centro ou a ala esquerda. Mas será necessário submeter essas doses a repetidas verificações, o que pretendo começar a fazer no próximo capítulo.



(continua)