quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Reynato Sodré Borges - Última carta



Dr. Reynato Sodré Borges. Foto cedida por José Laudo de Camargo.



Meu Caro amigo,

 

Volto ao assunto garanhões, aproveitando o resultado do GP Brasil 1979, ganho por APORÉ, secundado por SUNSET, que foi o ganhador do ano passado. O vencedor Aporé, realmente bom cavalo, de físico privilegiado, foi bem corrido  e gozou dos benefícios de não ter havido “cheval de jeu” ou “pace-maker” de outra coudelaria, que tivesse pretensões à vitória e assim, pode ele fazer um train de corrida a sua feição. Não, que tenha achado que 49” para os primeiros 800 metros (saindo do parado e quase todo em curva) tenha sido suave. Foi um train de cavalo bom, e, caso ele tivesse baixado para 48 ou 47 ¹/², seria a meu ver um train suicida. Para essa condição, é que se fazia necessário um “cheval de jeu” da coudelaria do Sunset, por exemplo. No entanto, havia no páreo o cavalo argentino Botón, ponteiro no seu estilo de correr, e, correu logo atrás de Aporé, na reta oposta, mas, jamais conseguiu pontear e nos últimos 1.000 metros, seu esforço foi maior ainda, mas, esmoreceu no final. Aporé estava “na ponta dos cascos”, muito bem preparado por Francisco Saraiva, que venceu seu primeiro GP Brasil. É claro que um “cheval de jeu” iria de qualquer modo para a ponta e ou forçaria o ponteiro de tal maneira (quebrando o seu ritmo), que ambos acabariam fora da competição. Juvenal Machado da Silva que também ainda não tinha vencido o GP Brasil, terminou em segundo no ano passado e foi à forra de Sunset, vencendo de ponta a ponta com Aporé, mais uma vitória (a sétima) da família Paula Machado. Uma tática inteligente dos Paula Machado, pois Amazon, ganhador do GP Dezesseis de Julho, era o preferido do jóquei principal da coudelaria, Gabriel Meneses, e os rivais correram por ele. Quando perceberam que o real inimigo era Aporé, que corria disparado na frente, já era tarde. Vitória maiúscula de Aporé pois derrotou entre outros Sunset, Big Lark, Artung, Mauser, Riadhis, Buvant, Topo e Maleval em mais uma vez um fortíssimo campo formado para a prova mais importante de nosso calendário. 

Utilizar táticas específicas para cada corrida é frequente na Europa, pois, o número de cavalos bons, nas grandes coudelarias, não é uma exceção. É muito raro, que prova de grupo em distância clássica (2.400 metros) seja ganha de ponta a ponta. Então, é óbvio, que os “cheval de jeu” são cavalos quase da mesma categoria que o titular. E o nosso turfe tem se beneficiado, comprando esses cavalos. Que aqui produziram bem e foram em campanha, auxiliares de outros da mesma coudelaria, tidos como melhores. Lembro por exemplo: Amphis, que corria para Philius; Cadir, que corria para Arbar; Dernah, que corria para Djedah; Violoncelle, que corria para Ocarina; Tang, que corria para Exbury e outros mais. Não há sentido de “pichação” no epíteto “cheval de jeu”, pois, caso não houvesse um ótimo cavalo que cuidasse dos “interesses do titular”, outro não seria o ganhador e assim, confirmando a alta classe. Violoncelle venceu o Prix de Saint Cloud em tempo magnífico, Cadir o Prix Morny, e Tang o Prix Jean Prat, todas provas de grupo 1...

Estou evitando o termo “faixa”, pois aqui é um auxiliar para prejudicar os outros, que possam ser adversários do “leão” do páreo, seja fechando, seja abrindo na curva, para entrar o titular, e outras “touradas”.

Lembro a você que no Derby francês de 1978, um “cheval de jeu” que ponteava, ao se esgotar, foi mal levantado e deu um tranco em ACAMAS, que praticamente o tirou do páreo, mas, deu margem a sua maravilhosa reação, que a crônica francesa cantou em prosa e verso. No inquérito, a comissão de corridas não deu uma punição violenta ao jóquei por não ter interferido no resultado dos 5 primeiros colocados. Levou 1 mês de suspensão nos hipódromos da região de Paris.

Quero lembrar a você, que  na 4ª carta (abril), estudei a linha materna de African Boy e para satisfação do critério “linha materna” em criação, ele ganhou a nossa tríplice coroa, além de vencedor de vários clássicos, e, quase todos, de ponta a ponta. Apesar da sua bela vitória no GP Cruzeiro do Sul, o Derby brasileiro, houve quem admitisse que African Boy foi corrido como “cheval de jeu” para Aporé, que vinha de boa vitória na Taça de Ouro. Acho possível, esta hipótese, mas, só a direção da coudelaria poderia confirmar ou não, e isso ela nunca fará. E claro, que este segredo será guardado e a meu ver, muito bem guardado (atitude hábil e louvável). Com a vitória no nosso St. Leger, que consagrou African Boy como tríplice coroado, confirmou ser um cavalo excepcional. Corre, fazendo um “train de luxo” (como se diz) e mantém no final uma ação rara de se ver.

Então vamos imaginar a necessidade de escolher um garanhão e selecionamos 3 opções que passaremos a analisar, AFRICAN BOY, APORÉ e SUNSET.

O primeiro é um tríplice-coroado, o segundo venceu o Brasil 79 e a Taça de Ouro e o terceiro ganhou o Brasil 78, em tempo recorde, e recebeu o título de “Rei da Raia Paulista” de 1979, além de ter sido segundo para Aporé no Brasil 79.

Então, meu bom amigo, imagine-se comprador de 1 desses 3 cavalos. Qual escolher?

As campanhas são todas demonstrativas de alta qualidade, e, podemos considera-las como semelhantes. Quanto ao físico, há grandes diferenças. African Boy é um cavalo equilibrado, elegante, cabeça árabe, pescoço de cisne, distingue como diriam os nossos irmãos mais velhos, os gaulêses.  Aporé, já é um cavalo de tipo “rústico”, robusto, poderoso, uma cópia fiel de seu pai EGOISMO, impõe-se pela potência que aparenta. Sunset, também um bonito cavalo, mas bem mais frágil (final da criação em Lorena).

Quanto ao pedigree, só APORÉ tem seu pai nascido no Brasil, que é o excelente já citado Egoismo (ganhador do Derby Paulista e dos Criterium do Rio e de São Paulo), filho do bom cavalo italiano Alberigo, na clássica Urgência, lamentavelmente, por falecer precocemente, deixou só 3 pequenas gerações no Haras Mondesir. Luzón, mãe de Aporé, pertence a linha da ROSE OF ENGLAND, ganhadora do Oaks e de sua filha FAERIE QUEENE vêm My Ladyship, a quarta mãe de Aporé e de Tibetano. Galloway Queen, irmã materna de My Ladyship, com WORDEN produziu Fallow, que importada pelos argentinos, produziu notáveis éguas, entre elas FARM e FIZZ. Concluindo, Aporé tem bom tipo, boa campanha, bom pai e boa linha materna. Tudo o que é necessário para se esperar um garanhão de futuro sucesso.

Agora, vou estudar o SUNSET, pai importado, WALDMEISTER, com vitórias em provas de grupo, em distância de fundo (naturalmente), com linha materna magnífica (TERESINA), e eu o considero garanhão da seleção atual do nosso turfe. Sua mãe, LÁ, é filha da notável NUVEM com MÂT DE COCAGNE. Não preciso lembrar a você, os irmãos de LÁ (TIMÃO, ZUIDO, DIESE, XIMBAÚVA e GAJÃO) e nem o que eles fizeram nas pistas. Esta linha materna também possui LONDRINA (que foi gêmea) e irmã inteira de Nuvem, isto é, KING SALMON e COLITA, que foi ótima égua nas pistas. Então, o Sunset tem bom físico, apesar de um pouco frágil (mas, isto não se transmite, caso a criação seja de bom nível), tem boa campanha e tem ótima linha materna sul-americana.

Agora, passemos ao AFRICAN BOY, que tem bom físico, pai importado FELICIO com vitórias em importantes provas de grupo, de notável linha materna (PRETTY POLLY) e já ocupando lugar na nossa seleção de garanhões. Sua mãe LISELOTTE, ganhadora clássica, tembém pertence a notável linha materna, a da CONCERTINA (St. Simon x Comic Song), que deu GARREN LASS e PLUCKY LIEGE, de onde saiu um elevado número de cavalos e éguas da melhor qualidade: Marguerite de Valois, Admiral Drake, Sir Gallahad, Bois Roussel, Bahram, Dastur, The Phoenix, Sunny Boy, Rajput Princess e sua filha Regal Exception, Manacor, Niloufer etc...

Estou acompanhando seu pasmo, quando diz: e o conselho de não ter garanhão residente e começar comprando cobertura! Certo que sim, e, esta é uma boa conduta, mas, dentro de um certo prazo e diante de fatos que ocorrerão, você vai sentir a necessidade de comprar um garanhão. E assim, aproveitei esta notável ocorrência em setembro de 1979 existirem 3 cavalos em condições de aproveitamento, na criação e, os coloquei como exemplos. É claro, que pediremos novamente influência de “Papai Noel” e com ela, vou me atrever a avalia-los, pois o nosso amado “Noel” o permitiu, achando que eles podem ser postos a venda.

Qual o melhor, pergunto? Difícil responder, pois todos são muito prendados. Parece-me que o mais caro seria AFRICAN BOY, o tríplice coroado, pois como entre os homens, o privilégio é muito ambicionado. E também, que a linha materna dele seja a que mais impressiona e sem dúvida, ela tem e terá sempre valor na Europa. Estimo que ele possa ser vendido por Cr$ 6.000.000,00 (seis milhões de cruzeiros), algo equivalente a U$ 200.000 (duzentos mil dólares).

SUNSET, que gosto muito, eu estimo em Cr$ 3.000.000,00 (três milhões de cruzeiros) e o APORÉ de pai nacional e mãe também nacional, o que também em parte ocorre com Sunset, pois sua mãe LÁ é nacional, cairia para algo como Cr$ 2.000.000,00. E nesses 2 casos, lembro-me do Nelson Rodrigues quando diz: que o subdesenvolvido não tem autoestima...

Já possui o meu bom amigo, nesse lindo sonho, 3 cavalos de ótima categoria, para dentre eles escolher aquele que será o pastor chefe do seu haras. Já terás o box para o garanhão, a maternidade e entre os dois o laboratório e residência de um empregado de categoria. Escolhido pelo gerente. Terá também 2 piquetes, onde ficarão as éguas próximas da cobertura, precedidas ou não da parição.

A condição ideal é não sindicalizar o garanhão. Ele será seu, e, venderá coberturas a quem desejar, exigindo éguas de boa qualidade.

Não suponha que o garanhão tenha obrigatoriamente que cobrir 40 éguas por estação de monta. Esse número, é o máximo que se lhe pode (ou deve) dar em éguas e para tanto, ele dará entre 100 e 140 saltos, em um haras bem orientado (sem cobertura dirigida, pelo palpar retal).

Aproveite a oportunidade, para ir contra o conceito de mais de duas coberturas por dia, o que leva o garanhão a entrar em fadiga sexual no último terço da estação de monta. Isto pode ocorrer (2 saltos diários), mas, não deve ser considerado como atitude rotineira e quando tiver que ser  praticado deverá ser com intervalo mínimo de 6 horas. Observou-se que após a segunda ejaculação, num intervalo mínimo de uma hora, a concentração total de espermatozoides no ejaculado cai em 43% já no terceiro ejaculado.

Durante o período reprodutivo, o garanhão é exigido diariamente, e suas características de comportamento e espermáticas devem corresponder à sua libido e taxa de fertilidade, sendo esta obtida através de exame específico na semana anterior ao início da estação de monta. O volume e a concentração no ejaculado dos garanhões estão diretamente relacionados ao tamanho (massa) testicular, que reflete a dimensão e o comprimento dos túbulos, e consequente eficiência de produção espermática.  Entretanto, a utilização de garanhões submetidos a regime intensivo de ejaculação exige maior controle quanto a sua capacidade reprodutiva e para alguns machos o tempo de reação é muito prolongado, exemplo de TANG (pai do derby-winner ARNALDO) que não apresentava interesse em mais de um serviço por dia.

Não se deve esquecer que o manejo ineficiente das éguas pode vir a ser um importante complicador da taxa de fertilidade.

Voltando a escolha entre os 3 garanhões oferecidos por Papai Noel. Consultado o livro de pedigrees das tuas éguas, você vai se lembrar que possui 3 éguas, filhas de Waldmeister e 3 filhas de Felicio !! E boas éguas, quanto a linha materna e por isso, vai escolher o APORÉ que tem um pedigree aberto para todo o seu plantel.

Procure meu bom amigo, acreditar no bom cavalo nacional, como garanhão. Não pode ser qualquer um, mas, um ganhador de um dos nossos 2 Derbys – Cruzeiro do Sul e Derby Paulista ou de provas de Gr.1. Particularmente considero o nosso Grand Criterium - GP Linneo de Paula Machado, Gr.1, em 2000 metros, como uma prova extremamente seletiva e cujos vencedores devem ser analisados com o mesmo cuidado que se olha os vencedores de nossos derbys. Os vencedores de grupos 1 brasileiros são merecedores de estudos e devem ser aproveitados. Os garanhões que têm sido importados são fracos, e, todos com campanhas locais inferiores aos 3 cavalos já citados e mais as de AGENTE – DAIÃO - TONKA - TIBETANO – TUCUNARÉ - FRIZLI – ARNALDO – LUCARNO - FITZ EMILIUS – EARP – BIG LARK - DARK BROWN e ORPHEUS entre inúmeros outros. E sempre que possível, escolha preferencialmente cavalos ganhadores dos 2.000 aos 2.400 metros.

O que aconselho, é que ao bom cavalo nacional sejam dadas éguas europeias (irlandesas principalmente, pois são as que ainda são de preço acessível) ou argentinas descendentes das famílias maternas elite que se formaram naquele país. É necessário sempre reforçar o plantel nacional, isto é, trazer elementos de origem, para manter o bom status genético de uma raça, que ainda está em evolução.

Você deve sempre tomar minhas posições não como dogmas e sim como pontos de partida para que através de seus estudos possa auferir conhecimentos e daí as avalizar ou mesmo as questionar. Mas, jamais se deixe levar pelo achismo, que é a filosofia que norteia a imensa maioria dos "proprietários de haras" da atualidade, note bem que não escrevi "criadores", esses de fato são raros e sua contagem cabe nos dedos de uma mão. 

Infelizmente grande parte de nossos haras são propriedade de endinheirados ignorantes das questões do PSI que não gostam de ouvir expertos em pedigrees e cruzamentos, treinadores, veterinários, ferrageadores e por consequência, de forma arrogante, sempre acham que sabem o que não sabem.

Fique com essa frase: "o pouco que sabemos só serve para nos dar noção do quanto desconhecemos."

Consequentemente o único caminho a ser trilhado é o do estudo, estudo e mais estudo!


Reynato Sodré Borges

Rio de Janeiro – setembro – 1979.

 


Dr. Reynato veio a falecer em outubro de 1979 e essa a última carta recebida. Além de ser uma das maiores autoridades em PSI que o Brasil já conheceu, foi dos mais conceituados oncologistas de sua época. Cofundador do Centro de Tumores Reynato Sodré Borges, em Blumenau, ainda hoje referência para tratamento da doença em Santa Catarina. 

Gratidão pelo privilégio dos anos usufruídos em sua convivência.


Ricardo Imbassahy